Apib participa da primeira reunião do gabinete de crise do Ministério dos Povos Indígenas

Apib participa da primeira reunião do gabinete de crise do Ministério dos Povos Indígenas

O gabinete, que está acompanhando os conflitos no sul da Bahia, pediu ao Ministério da Justiça para que a Polícia Federal e a Força Nacional atuem na região da TI Barra Velha e TI Comexatibá

Nesta sexta-feira (20/01), o gabinete de crise do Ministério dos Povos Indígenas, que está acompanhando os conflitos no sul da Bahia, realizou a sua primeira reunião que contou a presença de lideranças do povo Pataxó e representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Na ocasião, o gabinete anunciou que pediu a Flávio Dino, ministro da Justiça e da Segurança Pública, que a Polícia Federal e a Força Nacional atuem na região da Terra Indígena Barra Velha e TI Comexatibá. Além disso, foi solicitado ao Ministério de Direitos Humanos que um representante do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas integre o gabinete de crise.  

Também participaram da reunião representantes do Ministério da Justiça, Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União, Conselho Nacional de Direitos Humanos e do Governo do Estado da Bahia. 

No dia 17 de janeiro, os jovens  Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e Nawy Brito de Jesus, 16, ambos do povo Pataxó, foram assassinados na região. Conforme testemunhas e informações da Polícia Civil da Bahia, eles foram atingidos com tiros nas costas e na cabeça após serem perseguidos por homens em um carro.  

“Nós não dormimos mais. Ficamos sempre alertas e preocupados com as nossas famílias. Queremos que o Governo tire esses pistoleiros de lá! Nós somos os moradores originários e vamos lutar pelo nosso território”, disse um morador da TI Barra Velha e liderança do povo Pataxó presente na reunião. 

A Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), uma das organizações regionais de base da Apib, aguarda, há aproximadamente um mês, uma audiência pública com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA).

O pedido da audiência foi feito com o objetivo de relatar a violação de direitos contra os povos indígenas Pataxó (Bahia), Tuxá (Minas Gerais, Pernambuco e Bahia) e Maxakali (Minas Gerais).

Organizações indígenas acompanham gabinete de crise e reforçam pedido de audiência sobre ameaças e violência no Sul da Bahia

Organizações indígenas acompanham gabinete de crise e reforçam pedido de audiência sobre ameaças e violência no Sul da Bahia

Foto: Marcello Camargo/Agência Brasil

Clima de tensão e incitação ao ódio está presente em veículos de comunicação na região, que conta com apoio financeiro do agronegócio

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), juntamente a organizações de base e demais parceiros, vem denunciando o clima de tensão vivenciado pela comunidade Pataxó, no extremo sul da Bahia e aguarda, há aproximadamente um mês, por uma audiência pública solicitada via Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA).  O documento é assinado por organizações parceiras como Justiça Global, Terra de Direitos e Conectas Direitos Humanos: BrasilApoinmePovosIndigenas_230119_204425

O pedido foi feito para o início de 2023, a fim de relatar três situações de violação de direitos contra os povos indígenas Pataxó (Bahia), Tuxá (Minas Gerais, Pernambuco e Bahia) e Maxakali (Minas Gerais).  Na tarde do dia 17, os jovens Samuel Cristiano do Amor Divino, 25, e Nawy Brito de Jesus, 16, ambos da etnia Pataxó, foram assassinados na região, com tiros nas costas.  

A entidade está tomando as medidas judiciais cabíveis e acompanha o trabalho do gabinete de crise instalado pelo Ministério dos Povos Indígenas, com solicitação de envio da Força Nacional, via Ministério da Justiça e Segurança Pública. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), por meio da presidente Joenia Wapichana, também pediu providências para proteção dos indígenas da região. 

A incitação ao ódio aliado ao clima de conflito instalado na região do sul da Bahia sempre foi explícita por meio de ameaças que se intensificaram desde junho de 2022 e que contam com o apoio de veículos de comunicação da região, mantido por empresários do agronegócio local. 

A menos de um mês, homens armados, em uma caminhonete, invadiram outra aldeia dentro da Terra Indígena de Barra Velha do Monte Pascoal, a Quero Ver, e dispararam abertamente contra indígenas da comunidade Pataxó. Nos últimos meses, ao menos quatro indígenas morreram na região. 

No dia 16.01, um dia antes do assassinato dos Samuel e Nawy Pataxó, próximo a uma área de retomada do território, no município de Itabela (BA), o apresentador do programa Café Rural, Carlos Brito, ao abordar a situação de conflito local, fez as seguintes declarações, em tom de alerta: “na hora que morrer um bocado, o grande culpado (sic) são os homens da lei” e “Deixa um produtor cortar na bala um daqueles lá para ver o que acontece; agora, se for ao contrário, não dá nada”. 

Samuel e Nawy Pataxó foram mortos na BR-101 enquanto pilotavam uma motocicleta, no final da tarde de terça (17/1). Conforme testemunhas, ambos levaram tiros nas costas e na cabeça após serem perseguidos por homens em um carro, de acordo com informações da Polícia Civil da Bahia.  

No programa que vai ao ar para toda a região sul da Bahia e parte de Minas Gerais, além da transmissão via Youtube, o apresentador questiona a legitimidade das terras em disputa, cujo reestudo foi identificado pela FUNAI e dos indígenas a quem se refere como “supostos índios”. Ao menos 20 empresas locais ligadas ao agronegócio anunciam no programa.

Nos grupos de Whatssapp, conforme denúncia recebida pela Apib, circulam informações de que lideranças indígenas estariam com ‘a cabeça a prêmio’ pelo valor de R$ 200 mil. No programa do dia 17, o apresentador Carlos Brito, alerta para todos “tomarem cuidado no grupo de Whatsapp, em relação ao que aconteceu ou não”. 

“O Território Pataxó Barra Velha e Tupinambá de Olivença não é uma invenção antropológica como alegam os fazendeiros. Esta é uma região que representa o berço da História desses povos, onde estão enterrados seus antepassados, há uma relação de pertencimento. Não há como negar a real presença indígena na região ao longo da história e isto é público e acessível, antes mesmo da posse que fazendeiros alegam ter direito”, afirma o coordenador executivo da Apib, Dinamam Tuxá. 

A TI Barra Velha do Monte Pascoal abrange áreas em quatro municípios do sul da Bahia: Itabela, Itamaraju, Porto Seguro e Prado. A região desperta o interesse não apenas de empresários do setor agropecuário, mas também de empresas do setor de turismo, o que vem desencadeando muita especulação imobiliária. Entenda o histórico da sobreposição de terras AQUI.  

Desde junho, as comunidades dos Territórios Indígenas de Barra Velha e Comexatibá vêm denunciando a atuação dos criminosos, que ameaçam o povo Pataxó diariamente, disparam tiros contra suas casas, impedem a livre circulação no território e matam jovens inocentes.  

Em julho de 2022, O Ministério Público Federal (MPF) realizou uma série de reuniões em comunidades indígenas da região Sul da Bahia, para debater sobre os direitos dos povos tradicionais e a atual insegurança vivida por eles, após constantes episódios de violência na região.

Na ocasião, o procurador da república José Gladston ouviu o relato de lideranças da região que apontaram a atuação de grupos milicianos nas TIs, o que vinha provocando um verdadeiro clima de terror dentro das comunidades.   

No mês de Setembro, uma Comissão de lideranças Pataxó do Sul e do Extremo Sul da Bahia, representados pelas suas organizações dos territórios Comexatibá, Barra Velha e Território Coroa Vermelha, realizaram diversas reuniões em Brasília-DF, denunciando os ataques de pistolagem, por meio de milicianos, a mando de fazendeiros (grileiros) e suas organizações.  

Em carta, lideranças relataram a presença de drones sobrevoando moradias locais e a circulação de notícias falsas também têm sido amplamente utilizadas, numa guerra de informação criada para difamar as lideranças e apoiadores históricos, a fim de deslegitimar o movimento indígena, além de um depósito de armas em uma das fazendas locais, que seria o QG dos milicianos. 

Nas eleições de 2022, as comunidades indígenas do município de Prado (BA), deixaram de votar por falta de transporte e segurança. A cidade registro índice de abstenção de 27,84%. Várias comunidades ficaram isoladas e impedidas de sair, algumas, por cerco armado de pistoleiros e fazendeiros da região, fato que chegou a ser denunciado como violação de direito constitucional pela APIB e Associação Brasileira de Imprensa (ABI). 

Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib, é nomeado secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas

Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib, é nomeado secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas

Na Apib, Eloy atuou em causas importantes como o pedido de proteção aos povos isolados no STF

Eloy Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), foi nomeado como secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, conquista histórica do movimento indígena brasileiro. O decreto foi assinado na última terça-feira, 17 de janeiro, pela ministra Sônia Guajajara e pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. 

“O convite para integrar o Ministério dos Povos Indígenas é uma honra. Fico feliz e agradecido com a confiança depositada em mim! Agora vamos trabalhar juntos para garantir os direitos originários e construir o futuro indígena”, afirma Terena.

Na Apib, Eloy  integrou o GT Povos Indígenas do governo de transição e atuou em causas importantes como o pedido de proteção aos povos isolados e a luta pela derrubada do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal, bem como a proteção dos Guarani Kaiowá na Corte Interamericana de Direitos Humanos e a denúncia contra Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional. Ele deixará a coordenação jurídica da Articulação para assumir o cargo de secretário-executivo do Ministério. 

Nascido na aldeia Ipegue, localizada no município de Aquidauana, Mato Grosso do Sul, Eloy é doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da UFF e em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ, além de pós-doutor em Ciências Sociais pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, França.

Sua tese de doutorado, “Vukápanavo – O despertar do povo Terena para seus direitos: movimento indígena e confronto político” recebeu menção honrosa na edição 2020 do prestigioso Prêmio de Excelência Acadêmica da Associação Nacional Brasileira de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.

Sob determinação do MPI, Funai revoga norma que flexibilizava exploração de madeira em Terras Indígenas

Sob determinação do MPI, Funai revoga norma que flexibilizava exploração de madeira em Terras Indígenas

No apagar das luzes do governo Bolsonaro, foi aprovada uma medida que abria brechas para a exploração de madeira em terras indígenas e permitia a exploração por madeireiras e não indígenas. Nesta segunda-feira, 16/01, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) determinou que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) revogasse a Instrução Normativa (IN) Conjunta n° 12, de 31 de outubro de 2022.

Chamada de “plano de manejo florestal sustentável”, a norma foi gestada desde 2021, durante o governo de extrema direita, enquanto a fundação estava sob o comando do militar anti indígena, Marcelo Xavier e aprovada sob a pressão de empresas do ramo madeireiro.

Neste período a Fundação tinha o entendimento de que não havia “impedimento legal” para a extração e que seria possível um “manejo sustentável”, com a criação de regras e articulações interinstitucionais entre Funai e Ibama.

A normativa também abria brecha para a “abertura de estradas, pátios e ramais” e a “construção de obras de arte especiais, tais como pontes, estradas, obras de drenagens e outras”, além de “edificações”.

Em nota, a Funai constatou que a IN “violava artigos constitucionais, ofendia artigos do Estatuto do Índio (Lei n° 6.001/1973) e afrontava o princípio da consulta e consentimento prévio, livre e informado dos povos indígenas, estabelecido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”.

Historicamente, os territórios indígenas concentram algumas das maiores áreas de floresta preservada do Brasil. Sob o incentivo de Bolsonaro, no entanto, o desmatamento nessas áreas disparou, assim como os conflitos territoriais relacionados à questão.

Em média, a destruição foi de 11.396 km² por ano, somente na Amazônia. A ampliação do desmatamento se aproximou a 60% se comparado aos quatro anos anteriores (dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

A IN entraria em vigor no dia 15 de janeiro de 2023, com a revogação, seus efeitos foram imediatamente suspensos, porém ainda se faz necessária a fiscalização e o controle sobre a intrusão destas empresas nas TIs.

Milícia assassina mais dois jovens Pataxó, na Bahia

Milícia assassina mais dois jovens Pataxó, na Bahia

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) exigem justiça para as violências cometidas contra o povo Pataxó, no extremo sul da Bahia. Os assassinatos e ameaças não podem ficar impunes. Os responsáveis devem ser identificados, investigados e condenados pela Justiça. Os interesses de grileiros de terras, empresários do turismo e especuladores imobiliários não podem ser maiores que as nossas vidas.

Samuel Divino, 25 anos, e Inauí Brito, 16 anos, ambos do povo Pataxó, foram perseguidos e assassinados na tarde desta terça-feira (17), quando estavam na BR-101, próximo ao distrito de Montinho, entre os municípios de Itabela e Itamaraju, na Bahia. Testemunhas disseram ter visto os pistoleiros dentro de um monza e movimentações de duas camionetes que entraram na fazenda Brasília e saíram logo após os tiros. Os moradores da comunidade relatam que esta fazenda é a sede da milícia, um dos criminosos reside nela e responde pelo apelido de Gaúcho.

Este é mais um crime da milícia que tem espalhado o terror entre os indígenas da região. Há meses as comunidades dos Territórios Indígenas de Barra Velha e Comexatibá vem denunciando a atuação dos criminosos, que ameaçam o povo Pataxó diariamente, disparam tiros contra suas casas, impedem a livre circulação no território e matam jovens inocentes. Segundo informações locais, o grupo é composto por pistoleiros e policiais. A polícia militar local recebeu inúmeras denuncias sobre os atentados, porém alega que não consegue atender a demanda ora porque não possui efetivo suficiente, ora porque não consegue se deslocar até lá. No ano passado foi criada uma força tarefa especial, designada pelo governo do Estado para cuidar do caso, no entanto, ainda não houve resultados efetivos que garantissem a segurança dos povos indígenas.

As ameaças se repetem há mais de seis meses. “A gente vem sofrendo vários ataques a tiros. Nos últimos dias, várias casas foram ‘metralhadas’, inclusive a sede da fazenda”, disse um dos caciques. A Apib também realizou inúmeras denúncias às autoridades responsáveis ao longo do segundo semestre do ano passado. Mesmo com as denúncias de ameaças, em setembro de 2022, Gustavo Silva, uma criança de 14 anos, foi executado com um tiro na cabeça pelos mesmos milicianos, no município vizinho, Prado. No dia 27 de dezembro de 2022, a aldeia “Quero Ver”, do povo Pataxó, foi invadida por homens armados e encapuzados que metralharam casas na comunidade.

Demarcação

Os conflitos se acirraram após uma retomada feita em junho do ano passado e estão relacionados ao interesse de fazendeiros de gado, eucalipto, café e pimenta, além de especuladores imobiliários que querem comercializar lotes e promover o turismo predatório dentro das terras indígenas litorâneas.

No Extremo Sul baiano, a Terra Indígena de Comexatibá, em Prado; a Terra Indígena Barra Velha, em Porto Seguro; e a Terra Indígena Coroa Vermelha, entre Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, aguardam a homologação.

Ao todo, 13 terras indígenas devem ser demarcadas ainda este ano, visto que os documentos estão prontos para a homologação e não existem pendências jurídicas. Inclusive, cinco delas já estavam na Casa Civil e foram devolvidas para a Funai pelo governo Bolsonaro. Elas compõem a chamada costa do descobrimento, local do primeiro contato entre indígenas e colonizadores portugueses.

NUNCA MAIS UM GOVERNO SEM NÓS!!!

NUNCA MAIS UM GOVERNO SEM NÓS!!!

Discurso de posse da Ministra Sonia Guajajara

baixe aqui

Saudação

1. Inicialmente, quero agradecer a presença de todas as pessoas que aqui estão, neste momento tão emblemático para a história do Brasil. Agradeço a presença da Ex-Presidenta Dilma Rousseff, das Ministras e Ministros de Estado em nome da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, de todos os parlamentares, em nome do Deputado Federal Guilherme Boulos, de dirigentes partidários em nome de Juliano Medeiros, de todos os movimentos sociais, de toda a frente ampla democrática brasileira, dos representantes da comunidade internacional e da imprensa.

2. Quero saudar de forma especial, todas as lideranças indígenas, que com muito esforço chegaram aqui, e dedico este momento a todos os povos indígenas do Brasil.

3. Cumprimento aqui com muita honra a minha família, pai, mãe, irmãos, irmãs, primos, sobrinhas e filhos, que por muitos anos, tem sentido muita saudade da minha presença. Mas entendem que preciso cuidar de tantos outros filhos desta nossa Nação.

4. Agradeço a presença da primeira Dama, nossa querida Janja e do nosso Ilustre Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o qual parabenizo pela coragem e ousadia de reconhecer a força e o papel dos povos indígenas, neste momento em que é tão importante o reconhecimento deste protagonismo dos povos indígenas frente a preservação do meio ambiente e justiça climática, ao criar este Ministério inédito na história do Brasil.

5. Povos esses, que resistem há mais de 500 anos, a diários ataques covardes e violentos, tão chocantes e aterrorizantes como vimos neste último Domingo aqui em Brasilia, porém sempre menos visibilizados. A partir de agora, essa invisibilidade não pode mais camuflar a nossa realidade.

6. Estamos aqui, de pé! Para mostrar que não iremos nos render.

7. A nossa Posse aqui hoje, minha e de Anielle Franco, é o mais legítimo símbolo dessa resistência secular preta e indígena no Brasil!

Contextualização subjetiva

8. Permitam-me voltar a um passado recente de minha história para compartilhar uma memória com vocês. Quando eu tinha 17 anos, fui chamada por minha tia Maria Santana para conversar. Tia Maria é parteira e uma respeitada liderança espiritual. Como não foi um convite qualquer, eu pensei: “O que será que a tia Maria quer?”. Subi na garupa de uma moto e fui até a Aldeia Lagoa Quieta, no território indígena Araribóia, para encontrar com ela. Chegando, vi Tia Maria me esperando com dois presentes, um colar e um maracá. Ela então me olhou e disse com aquela voz serena: “Ô fia, quero te entregar esses presentes que são símbolos de liderança. E eu passo a você, o poder da palavra. Você vai ter o dom da comunicação, todo mundo vai te ouvir. Você vai crescer e tudo que você tiver para falar vão te escutar. Esse maracá vai ecoar e você será a porta voz do nosso povo.”

9. Então hoje, eu quero dizer para vocês, que aquela Sônia que para estudar trabalhou em casa de família como babá e “empregada doméstica” assim como era chamada essa profissão na época, está aqui, nomeada para o cargo de Ministra de Estado dos Povos Indígenas do Brasil.

10. Se estou aqui hoje, é graças à força ancestral e espiritual de meu povo Guajajara Tentehar, graças a resistência secular da luta dos povos indígenas do Brasil, graças também à minha persistência de nunca desistir.

11. Ressalto também o apoio que recebi dos povos indígenas e da população do Estado de São Paulo que, pelas urnas, me elegeram Deputada Federal, afirmando a todos os brasileiros e brasileiras, que uma mulher indígena é plenamente capaz de contribuir com a reconstrução da democracia neste país.

12. Assumo com honra e coragem este ousado e inovador desafio. Uma missão já anunciada há tantos anos pela tia Maria.

Contextualização coletiva

13. Talvez muitas pessoas nunca irão entender o quanto este momento é significativo para mim e para nossos povos, talvez nem todas as pessoas que estão me ouvindo saibam que a existência dos povos indígenas do Brasil é cercada por uma leitura extremamente distorcida da realidade. Ou nos romantizam, ou nos demonizam.

14. Nós não somos o que, infelizmente, muitos livros de História ainda costumam retratar. Se, por um lado, é verdade que muitos de nós resguardam modos de vida que estão no imaginário da maioria da população brasileira, por outro, é importante saberem que nós existimos de muitas e diferentes formas. Estamos nas cidades, nas aldeias, nas florestas, exercendo os mais diversos ofícios que vocês puderem imaginar. Vivemos no mesmo tempo e espaço que qualquer um de vocês, somos contemporâneos deste presente e vamos construir o Brasil do futuro, porque o futuro do planeta é ancestral!

Contextualização histórica dos problemas enfrentados

15. A invisibilidade secular que impacta e impactou diretamente as políticas públicas do Estado é fruto do racismo, da desigualdade e de uma democracia de baixa representatividade, que provocou uma intensa invisibilidade institucional, política e social, nos colocando na triste paisagem das sub-representações e sub-notificações sociais do País. São séculos de violências e violações e não é mais tolerável aceitar políticas públicas inadequadas aos corpos, às cosmologias e às compreensões indígenas sobre o uso da terra.

16. Durante a pandemia que impactou fortemente o mundo e a população brasileira, os povos indígenas do Brasil tiveram milhares de vidas ceifadas pelo negacionismo científico e criminoso do Governo anterior, democraticamente derrotado nas urnas pelo voto popular em 2022.

17. As dificuldades no acesso aos serviços de saúde, de saneamento e as falsas informações propagadas, potencializaram literalmente um plano de genocídio.

18. Tudo isso levou a um estado de emergência, que através das organizações indígenas mobilizou a criação de barreiras sanitárias, diversas campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos, os advogados indígenas conquistaram grandes vitórias judiciais, promovemos também redes de afetos, solidariedade e somas que permitiram evitar que mais vidas indígenas fossem perdidas.

19. É preciso lembrar de problemas estruturais que, recentemente, foram imensamente potencializados e precisam ser encarados como prioridades. São graves os casos de intoxicações provocados por mercúrio dos garimpos, pelos agrotóxicos nas grandes lavouras do agronegócio; as invasões em nossos territórios; as condições degradantes de saúde e saneamento; o aumento da insegurança alimentar que resultou, inclusive, na morte de inúmeras crianças e idosos indígenas e a desproteção dos territórios onde vivem povos indígenas isolados. Lembrando que, na Amazônia brasileira, somam-se 114 grupos de povos de recente contato ou também os que nunca tiveram nenhum contato com a sociedade. Os chamados povos isolados, e que se encontram em estado de alta vulnerabilidade, devido ao desmatamento, garimpo ilegal e a grilagem de terras.

20. O exemplo que mais recentemente voltou a correr os noticiários do mundo, é a situação extrema em que vivem os parentes Yanomami. Não é mais possível convivermos com povos indígenas submetidos a toda sorte de males, como desnutrição infantil e de idosos, malária, violação de mulheres e meninas e altos índices de suicídio.

21. Presidente Lula, arrisco dizer, sem exagero, que muitos povos indígenas vivem uma verdadeira crise humanitária em nosso país e agora estou aqui para trabalharmos juntos, para acabar com a normalização deste estado inconstitucional que se agravou nestes últimos anos.

22. Este estado de emergência e de luta cotidiana por sobrevivência, fez com que um direito tão importante como a educação diferenciada, pautada pela Constituição de 88, deixou de ser debatido e implementado.

23. Precisamos voltar a pensar as políticas de educação para os indígenas, valorizando as identidades plurais, formando professores indígenas, ampliando o acesso e a permanência no ensino superior.

24. Além disso, não posso deixar de lembrar os parentes que foram retirados de nosso convívio pela bala do fascismo que imperou no Brasil nos últimos quatro anos, derramando, sem pudor, muito sangue indígena. Lembremos a força daqueles que tombaram na luta como Paulino, Janildo, Jael e Antonio Guajajara, Ari Uru Eu Wau Wau, Dayane Kaingang, Estela Verá Guarani Kaiowa, Wellington Pataxó, Ariane Oliveira, a menina Raissa e tantos outros parentes vitimados pelo garimpo ilegal, pelas invasões de seus territórios e por tantas outras ações e omissões do Estado. Além disso, preciso destacar a força de Bruno Pereira e Dom Philips, em memória de quem saúdo todos os nossos aliados e aliadas defensores do meio ambiente e dos direitos humanos.

25. Gente! Nós não somos os únicos que necessitam aqui viver. Nós apenas coabitamos a mãe Terra junto com milhões de outras espécies. O desprezo por essas outras formas de vida, as práticas de desmatamento intenso feitas sempre em nome da economia de curto prazo, têm efeitos devastadores para o futuro de todos nós. As alterações no uso do solo provocam um grande desiquilibrio em nosso ecossistema, que impactam diversas espécies causando profundas transformações, inclusive, as grandes epidemias.

26. As terras indígenas, os territórios habitados por demais povos e comunidades tradicionais e as unidades de conservação são essenciais para conter o desmatamento no Brasil e para combater a emergência climática enfrentada por toda a humanidade. A proteção dos diferentes biomas é essencial para qualquer produção agrícola, pois garante água, garante a presença de agentes polinizadores e de tantos outros fatores sem os quais, nada se produz.

27. Se, antes, as demarcações tinham enfoque sobretudo na preservação da nossa cultura, novos estudos vêm demonstrando que a manutenção dessas áreas tem uma importância ainda mais abrangente, sendo fundamentais para a estabilidade de ecossistemas em todo o planeta, assegurando qualidade de vida, inclusive nas grandes cidades. Daí a importancia de reconhecer os direitos originários dos Povos Indígenas sob as terras em que vivem.
28. As Terras Indígenas são importantes aliadas na luta contra o aquecimento global e fundamentais para a preservação da nossa biodiversidade. Como já foi considerado no Acordo de Paris, e na Declaração de Nova York para Florestas Tropicais das Nações Unidas, que o conhecimento dos povos e comunidades tradicionais, são também conhecimentos científicos e como uma das últimas alternativas para conter a crise climática. É preciso que este conhecimento saia dos tratados internacionais, e seja valorizado na prática, por todo o território Nacional, por meio de políticas locais, considerando a diversidade de povos, culturas e territórios.

29. Hoje, vocês todos estão presenciando um momento de transição histórica, tal qual foi a singular colaboração indígena, na Assembleia Nacional Constituinte. Naquela ocasião, um passo muito importante foi dado com o fim do paradigma integracionista e da tutela.

30. Hoje, vocês presenciam um passo ainda maior com este Ministério dos Povos Indígenas e esperamos, com isso, fazer respeitar a nossa existência e o nosso protagonismo.

31. O Brasil do futuro precisa dos povos indígenas. Tudo que tradicionalmente é chamado de cultura entre os brasileiros e brasileiras, para nós significa tudo que somos.
32. É nosso modo de vida, nossa comida, nossos rituais, nosso uso da terra, nossas práticas e costumes, tanto aqueles mais cotidianos, quanto outros ritualizados. Cultura é também sinônimo de luta!

33. Lembremos também o que estava sendo empurrado para o esquecimento: o Brasil é plural, é alegria, é colorido e solidário!

34. É com esse espírito que assumo a missão de sensibilizar toda a sociedade brasileira e a convido para juntos, reflorestarmos mentes e corações rumo a uma democracia do bem viver de todos os brasileiros e brasileiras.

35. Os desafios são tremendos. E quero aqui deixar o meu pedido ao conjunto de ministras e ministros, governadoras e governadores, prefeitas e prefeitos, que compreendam o sentido de aldear a política, as políticas indígenas desses novos tempos, como já disse nosso Presidente e também o ministro da casa civil, também são transversais e necessitam do apoio e do diálogo nas diversas áreas.

36. Estamos diante de uma crise humanitária. Por isso, a criação do Ministério dos Povos Indígenas sinaliza para o mundo, o compromisso do Estado brasileiro com a emergência e justiça climática, além de inclusão, reconhecimento e início da reparação histórica, da invisibilidade e da negação de direitos.

37. Quero, ainda, destacar que este Ministério é de todos os povos indígenas do Brasil, além de patrimônio do povo brasileiro, pois cada indígena vivo representa um guardião climático da mãe Terra. Quero aproveitar e apresentar a equipe do Ministério: Eloy Terena, Secretário Executivo; Jozi Kaigang, minha Chefe de Gabinete; Eunice Kerexu, Secretária de Direitos Ambientais e Territoriais; Ceiça Pitaguary, Secretária de Gestão Ambiental e Territorial Indígena; Juma Xipaia, Secretária de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas; e Marcos Xucuru, Assessor Especial do MPI.

38. É urgente promovermos uma cidadania indígena efetiva. Isso não se faz sem demarcação de territórios, proteção e gestão ambiental e territorial, acesso à educação, acesso e permanência à universidade pública, gratuita e de qualidade, ampla cobertura e acesso à saúde integral.
Saibam que este Ministério chega comprometido com tudo isso e com a promoção de uma política indígena em todo o território nacional com potencial de fazer frente às mazelas que tomaram nossos corpos, memórias e vidas.

39. E antes de finalizar, quero aqui já anunciar a recriação do Conselho Nacional de Política Indigenista, que garante a participação paritária entre representações indígenas de todos os estados brasileiros e órgãos do executivo federal.

40. Sabemos que não será fácil superar 522 anos em 4. Mas estamos dispostos a fazer desse momento a grande retomada da força ancestral da alma e espírito brasileiros. Nunca mais um Brasil sem nós!

RETROSPECTIVA 2022: Resistência do Brasil Indígena

RETROSPECTIVA 2022: Resistência do Brasil Indígena

Por Sonia Guajajara e Eloy Terena
Ministra dos Povos Indígenas e Coordenador jurídico da Apib

INTRODUÇÃO

A política de morte de Bolsonaro no ano de 2022 incluiu um reforço à agenda anti-indígena no Congresso Nacional. Isso, aliado ao contexto eleitoral, impulsionou atuações incisivas do movimento indígena em diversas esferas. Neste ano, a Apib continuou atuando na jurisdição constitucional, arena pública esta que passou a ser acessada pelos povos indígenas de forma contundente nos últimos anos, bem como marcou presença nas eleições e em instâncias e cenários internacionais.

Nesta retrospectiva, destacamos uma breve cronologia das mobilizações tocadas pelo movimento indígena em 2022, passando em seguida para a análise de alguns atos específicos do governo Bolsonaro. Chamamos também atenção para os trágicos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, para a atuação jurídica da APIB, em âmbito nacional e internacional, e das comitivas e delegações enviadas a outros países, assim como para as incidências específicas na seara ambiental. No decorrer do texto, ainda são abordadas a situação de aumento de violência em diversos territórios indígenas brasileiros, assim como a participação indígena nas eleições de 2022, por meio da Campanha Indígena e do “aldeamento” da política, e no governo de transição, através do Grupo Técnico Povos Indígenas.

MOBILIZAÇÕES

Logo no início do ano, ao retomar suas atividades no começo de fevereiro, o Congresso Nacional e a bancada governista prometeram colocar em pauta nas semanas seguintes uma série de projetos cujo resultado é o desmatamento, especialmente na Amazônia, e o aumento da violência contra as comunidades tradicionais, especialmente os povos indígenas. Ao total, cerca de 35 Projetos de Leis foram enviados com urgência para a Câmara dos Deputados e Senado Federal, em uma lista elaborada como uma espécie de sugestão do Executivo para o comando do Legislativo. Dentre as prioridades, as principais ameaças aos povos indígenas e ao futuro do planeta eram o PL 490/2007 (Marco Temporal ), PL 191/2020 (Mineração em Terras Indígenas), PL 3729/2004 (Licenciamento ambiental), PLS 510/2021(PL 2633/2020 – Regularização Fundiária), PL 3723/2019 e PL 6438/2019 (Porte de Armas).

Diante disso, em 9 de março a APIB, em parceria com diversas organizações, movimentos sociais, personalidades e artistas, atendeu ao chamado do cantor e musicista Caetano Veloso para o Ato pela Terra, no qual peregrinaram na Esplanada, pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e pelo Congresso Nacional, numa jornada de mais de oito horas em defesa da vida e contra os diversos projetos legislativos que foram elencados como prioridade pelo presidente Bolsonaro e que fazem parte da agenda de morte que ameaça os direitos e vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais no Brasil. A manifestação foi a maior manifestação ambiental realizada no país fora de conferências da ONU (Organização das Nações Unidas), reunindo cerca de 15 mil manifestantes, 230 organizações e coletivos da sociedade civil e mais de 40 artistas.

No mês seguinte, de 4 a 14 de abril, foi realizado o Acampamento Terra Livre (ATL) 2022, organizado pela APIB, suas organizações regionais de base, com o tema “Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política”. Considerado a maior mobilização indígena do país, o ATL 2022 foi instalado no espaço do “Centro Ibero-americano de Culturas”, antigo complexo da Fundação Nacional de Artes (Funarte), localizado no Eixo Monumental, em Brasília (DF). Ao longo dos dez dias, mais de 8 mil indígenas de 200 povos trouxeram tradições, cantos e palavras de ordem para denunciar a política anti-indígena do governo Bolsonaro.

Foram debatidos temas como demarcação dos territórios tradicionais, projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional, o Recurso Extraordinário com Repercussão Geral aos territórios indígenas (RE Xokleng), além do debate “Aldear a Política: nós pelas que nos antecederam, nós por nós e nós pelas que virão”, que visou fortalecer especialmente indígenas mulheres para as Eleições de 2022. Ao afirmar que iriam aldear a política, os indígenas reforçaram que o Congresso Nacional é um dos principais espaços de tomadas de decisões em relação às suas vidas e, por isso, devem fazer parte do parlamento, garantindo que haja representatividade indígena nestes espaços da política institucional.
Por isso a Apib lançou a iniciativa “Campanha Indígena”, com a intenção de incentivar e apoiar candidaturas indígenas às Assembleias Legislativas e ao Congresso Nacional, entendendo ser fundamental aumentar a representatividade indígena nas Casas Legislativas, não só porque é nelas que correm as principais ameaças aos direitos fundamentais dos povos originários, assegurados pela Constituição Federal de 1988, mas também para estabelecer um nível de diálogo institucional com todas as esferas de governo.

Movidos por esta iniciativa, os povos indígenas presentes no ATL 2022 também se manifestaram em Carta Aberta anunciando apoio à pré-candidatura de Lula como Presidente da República, afirmando acreditar que não há espaço para nenhum tipo de neutralidade quando o assunto é a eleição presidencial e que Lula representa uma parcela da sociedade que não se cala diante das desigualdades e que é contra a barbárie do capital, o ódio fascista e o racismo estrutural do sistema atual. Além disso, cobraram do futuro presidente um processo intenso de diálogo, elaboração de propostas e de compromissos políticos que resultassem em um Programa de Governo coletivo e atento às questões urgentes enfrentadas atualmente pelos povos indígenas.

Uma das principais discussões durante o ATL foi acerca da tese do Marco Temporal, que restringe o direito das comunidades às terras que tradicionalmente ocupam e é repudiada pelos povos indígenas, que apontam a tese como inconstitucional. Tal tese, que está sendo discutida no âmbito do Recurso Extraordinário n. 1.017.365 (RE Xokleng), cujo julgamento já foi interrompido duas vezes no ano passado, deveria ter sido julgada novamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 23 de junho de 2022, no entanto, esta votação que decidirá os rumos das demarcações das terras indígenas no país foi adiada mais uma vez.

De acordo com a tese do Marco Temporal, a demarcação de uma terra indígena só poderia acontecer se fosse comprovado que os povos originários estavam sobre o espaço requerido antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal. Ou seja, os povos originários teriam que ter alguma “documentação” comprovando sua ocupação no território reivindicado antes de 88. Eventual vitória desses argumentos racistas implicará na anulação de procedimentos de demarcação e o aumento de conflitos e de atos de violência contra os povos indígenas. No entanto, como é de conhecimento público, estes povos viviam em todo o território brasileiro desde muito antes do Brasil ser colonizado por portugueses. Assim, a tese que se contrapõe ao Marco Temporal se chama Indigenato, de acordo com a qual a posse da terra pelos indígenas é um título congênito, ao passo que a ocupação é um título adquirido.

A Apib ressalta que, quanto mais o julgamento retarda, mais as explorações e violências por parte do agronegócio continuam ganhando vantagem sobre as vidas dos povos indígenas e por isso, precisamos urgentemente de uma nova data para o julgamento. Até o momento, somente dois ministros votaram. Luiz Edson Fachin votou a favor da tese do indigenato, afirmando que o Marco Temporal torna “insolúveis algumas questões fundamentais para a qualificação da posse indígena”. Já o ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro para a Corte, foi a favor do Marco Temporal.
Para junho ainda estava marcada uma nova mobilização presencial em Brasília: a segunda edição do Acampamento Luta Pela Vida. No entanto, nas vésperas de sua realização, como o julgamento do marco temporal foi adiado mais uma vez, o novo acampamento também foi cancelado. Apesar disso, para pedir ao STF que retome a pauta do Marco Temporal para votação, o movimento indígena convocou ações nos territórios, nas aldeias e nas redes sociais para o dia 23 de junho, data em que estava prevista a votação na Corte. Ao todo, foram 40 ações políticas, em todas as regiões do Brasil, envolvendo dezenas de territórios, que foram desde fechamentos de BR’s, a retomadas de territórios e atos em 40 sedes da Funai realizados por servidores em greve.

Em São Paulo, centenas de pessoas mostraram solidariedade à causa, se reunindo com os indígenas em frente ao Masp, no final da tarde. Em Brasília, a mobilização foi na Praça dos Três Poderes, em frente ao STF, onde foram feitos rituais sagrados. Ao longo da respectiva semana, os diversos povos presentes na capital também realizarem uma série de reuniões e audiências: com parlamentares no Congresso Nacional; na Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH); no Conselho Nacional de Justiça (CNJ); no Supremo Tribunal Federal; na Fundação Nacional do Índio (Funai). Também foi organizado pela APIB o “Seminário sobre o Regime Constitucional das Terras Indígenas no Brasil”, na Universidade de Brasília (UnB), que reuniu indígenas, parceiros, acadêmicos e juristas, os quais reafirmaram a inconstitucionalidade do Marco Temporal e cobraram coragem do STF para materializar a Constituição de 1988.

ATOS DO GOVERNO BOLSONARO

Neste ano observamos as tensões entre Rússia e Ucrânia crescerem exponencialmente por conta da aproximação dos ucranianos com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e a subsequente invasão russa à Ucrânia em fevereiro. Diante disso, no dia 2 de março Bolsonaro tentou utilizar o conflito para massacrar os povos indígenas, em manobra política que visava legalizar crimes nos territórios originários, sob o argumento de que o conflito entre os dois países europeus prejudicaria o comércio de fertilizantes à base de potássio e que, portanto, seria necessário aprovar o Projeto de Lei (PL) 191/2020 no Congresso Nacional para explorar o mineral em territórios indígenas. Bolsonaro utilizou a comoção mundial sobre este conflito para rifar os direitos territoriais dos Povos Indígenas, apresentando uma solução para uma crise de preços dos fertilizantes que é falsa, pois as principais fontes de potássio no Brasil não estão em terras indígenas, e que ignora a manifestação da vontade expressa dos povos indígenas.
No mês seguinte, não bastassem as constantes ameaças e violações cometidas pelo desgoverno Bolsonaro contra os povos indígenas no Brasil, especialmente durante a pandemia de Covid-19, na qual trabalhou para agravar a crise sanitária e humanitária, desestruturando a saúde indígena, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou, no dia 15 de março, uma portaria concedendo a “Medalha do Mérito Indigenista” para o presidente genocida Jair Bolsonaro e diversas pessoas que compõem o primeiro escalão do Governo e operam suas políticas de destruição. Em contraposição, a APIB reconheceu e denunciou consagrando com a “Medalha do Genocídio Indígena” as políticas de morte do Governo Bolsonaro.

No que tange à Fundação Nacional do Índio (funai), desde setembro de 2021, a entidade se manteve omissa quanto à proteção de indígenas isolados do Rio Mamoriá, denominados como “isolados do Mamoriá Grande”, que habitam o interior da Reserva Extrativista do Médio Purus. À época, uma expedição da equipe descentralizada da Funai havia transmitido à Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (GIIRC) a informação da identificação do grupo, com existência até então desconhecida. Cinco meses depois, a entidade indigenista ainda não havia tomado as medidas necessárias à proteção dos isolados, o que levou a APIB, em fevereiro de 2022, a enviar ofício ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República solicitando medidas urgentes.

Em mobilização do Dia Internacional dos Povos Indígenas, 9 de agosto, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e suas organizações regionais de base convocaram atos para exigir a demarcação de Terras Indígenas. Entre as ações esteve o protocolo de uma representação nas procuradorias do Ministério Público Federal (MPF) de diversas localidades no país, denunciando o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, de cometer crime de improbidade administrativa. As petições protocoladas nos MPF pediram a instauração de inquérito civil para apurar a omissão da Funai na demarcação das terras indígenas e na ausência sistemática de proteção das áreas já demarcadas no Brasil. A Apib também protocolou nova petição em Ação Civil Pública (ACP), que tramita na 9ª Vara da Justiça Federal de Brasília, para pedir o afastamento imediato de Xavier, apresentando novos fatos e violações cometidos por sua gestão em 2022.

Em áudio obtido com exclusividade e liberado em outubro pelo portal O Joio e o Trigo em parceria com o The Intercept, o Coordenador Regional da Funai de Barra do Garças, no Mato Grosso, afirmou, em reunião fechada realizada em 23 de agosto que o presidente do órgão, Marcelo Xavier, pretendia legalizar o garimpo e a extração de madeira em terras indígenas. Na gravação, é mencionado que Xavier estaria estudando duas instruções normativas, uma que permite o indígena a fazer o manejo florestal, vender e cultivar a madeira, e outra para liberar o garimpo em terra indígena.

Por fim, mesmo nos últimos dias de mandato, Bolsonaro não se absteve de buscar violar os direitos dos povos indígenas. No dia 20 de dezembro, o Ministério Público Federal abriu um inquérito para investigar a elaboração de instrução normativa que libera a extração de madeira em terras indígenas, autorizando o chamado manejo florestal sustentável, e que foi assinada pelos presidentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Eduardo Bim, e da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Augusto Xavier. Em nota técnica, a Apib condenou tal medida inconstitucional e que retroalimenta a violência contra os povos indígenas.

ASSASSINATOS DE BRUNO PEREIRA E DOM PHILLIPS

Ainda no início do mês de junho, outro fato marcou a imprensa nacional e também internacional: o indigenista Bruno da Cunha Araújo Pereira, servidor licenciado da Fundação Nacional do Índio (Funai), e o jornalista britânico Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian, desapareceram na Terra Indígena do Vale do Javari, no estado do Amazonas, enquanto desempenhavam atividades de fortalecimento de proteção territorial contra invasores, em apoio à organização indígena local.

Bruno Pereira prestava consultoria à União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA) acerca da proteção territorial da referida TI, em razão de sua expertise como Coordenador Regional da Funai em Atalaia do Norte e como Coordenador-Geral de Índios Isolados e Recém Contatados, instância de cúpula da Funai para abordar questões relativas aos povos indígenas isolados e de recente contato. Ele havia sido alvo de diversas ameaças pelo trabalho que desempenhava junto aos indígenas contra os invasores que atuam na região, tendo sido ameaçado recentemente em carta enviada à UNIVAJA, dirigida aos colaboradores da entidade.

A região do desaparecimento condensa conflitos graves, num clima de violência em que madeireiros, pescadores ilegais e o narcotráfico internacional exercem suas atividades diante da incapacidade e omissão dos órgãos responsáveis pela fiscalização e proteção dos territórios indígenas. A exemplo, está em curso a investigação de um esquema de lavagem de dinheiro para o narcotráfico por meio da venda de peixes e animais e que pode estar relacionado ao desaparecimento da dupla. Até o momento, o caso não foi completamente desvendado. Dois suspeitos confessaram o crime e encontram-se presos em decorrência das investigações, junto com outro investigado cuja participação foi mencionada em depoimentos de testemunhas. Há somente suspeitos apontados como mandantes do crime.

SITUAÇÃO DOS PATAXÓ

Neste ano também pudemos acompanhar a escalada da violência sofrida pelo Povo Pataxó do extremo sul da Bahia. Desde junho instalou-se um cenário de conflitos graves a partir da retomada de parte do território pelos indígenas, que encontram resistências de fazendeiros locais. Diversas comunidades e aldeias denunciaram ataques e cerco de fazendeiros e pistoleiros fortemente armados com pistolas e fuzis, que por vezes dispararam tiros contra os moradores locais e espalharam falsas informações com o intuito de difamar os indígenas. Durante semanas, famílias inteiras foram impedidas de transitar, sem possibilidade de comprar alimentos nas cidades ou sair para trabalhar, em atos de retaliação do agrobanditismo, conduzidos por proprietários de fazendas vizinhas ao TI. De acordo com os relatos, as ameaças têm ocorrido de forma sistemática desde as retomadas feitas no mês de junho e agosto na região.

Diversas organizações indígenas locais e regionais se mobilizaram e acionaram órgãos e entidades públicas, na tentativa de cobrar uma resposta efetiva do Estado para resolver a situação. Neste sentido, a Apib participou de missão emergencial organizada em outubro pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), em conjunto com o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos e outros órgãos e entidades, para verificar violações a direitos humanos no território indígena do povo Pataxó e prestar solidariedade às comunidades, coletando depoimentos e testemunhos, reconhecendo como problemática central a morosidade da demarcação do território e o cenário de violência nos conflitos com os latifundiários da região.

Importante ressaltar a postura racista da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) frente a situação dos Pataxós, ao emitir uma nota condenando a luta desse povo no Território Indígena de Barra Velha, município de Porto Seguro. A nota imputou aos indígenas condutas que inferem no descumprimento da legislação, praticando “ilicitudes” e “esbulho ou turbação de propriedades” Tratou-se de uma postura absurda da instituição diante da realidade dos ataques de milícias sobre o território e o cerco armado às comunidades.

ATUAÇÃO JUDICIAL

Em 2022, a Apib continuou atuando, por meio de sua assessoria jurídica, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Nº 709 no STF, proposta em junho de 2020 pela APIB com o objetivo de combater ações e omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia de Covid-19 e cobrar providências, devido ao risco de genocídio de diversas etnias.

Em janeiro, a Apib entrou com uma petição na ADPF 709 contra a Funai. Desde o dia 29 de dezembro de 2021, o órgão responsável pela política indigenista do Governo Federal havia excluído as Terras Indígenas (TIs) não homologadas das atividades de proteção. Cerca de 239 territórios tradicionais foram afetados diretamente com a medida, o que significaria o abandono de um terço das TIs existentes no Brasil e impactaria justamente as mais vulneráveis juridicamente, que sofrem contínuas invasões e que abrigam 114 povos indígenas em isolamento voluntário e de recente contato. Além da petição na ADPF 709, a Apib entrou com uma representação no Ministério Público Federal (MPF). Outras 15 organizações indígenas também entraram com pedido no MPF por improbidade administrativa contra a Funai.

A medida da Funai foi publicada pelo Coordenador Geral de Monitoramento Territorial para orientar as Coordenações Regionais, os Serviços de Gestão Ambiental e Territorial (SEGATs) e as Coordenações Técnicas Locais (CTLs). A decisão foi embasada em um entendimento jurídico da Procuradoria Federal Especializada (PFE), da Funai, que condiciona a execução de atividades de proteção territorial somente após o término do procedimento administrativo demarcatório, ou seja, após a homologação da demarcação por Decreto presidencial e o registro imobiliário em nome da União. Ocorre que, no dia 1º de fevereiro, o ministro do STF, Luis Roberto Barroso, relator da ADPF 709, atendeu ao pedido da Apib e suspendeu tais atos administrativos da Funai.

Em março, Barroso também estabeleceu um prazo de 30 dias para que o governo Bolsonaro disponibilizasse no site do Ministério da Saúde todos os dados de saúde sobre indígenas, em formato semelhante ao utilizado para as informações sobre os demais brasileiros. O ministro estabeleceu multa diária de R$100 mil em caso de descumprimento dentro do prazo fixado. Disse também que houve resistência do governo na apresentação de dados, enfatizando que é direito de toda a sociedade conhecer tais informações e que, mesmo que a imprecisão dos dados seja um problema anterior à pandemia, isso deve ser saneado, para que a União cumpra com seu dever de transparência e preste adequadamente serviço público essencial à preservação da vida dos povos indígenas.

Já em maio, foi solicitado ao Supremo a proteção do povo Yanomami, que segue sob ameaça do garimpo ilegal, na região de Roraima, em TI demarcada e homologada. O governo veio descumprindo medida cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e uma decisão do STF, desde maio de 2021, que determinam a proteção integral do referido território. Neste sentido, foi denunciada a conivência do governo federal com os crimes cometidos pelo garimpo em territórios indígenas, que provocou uma nova onda de migração de garimpeiros para os locais de extração de minerais. Não só houve o avanço da destruição promovida, mas também foram revelados casos de violência sexual sobre mulheres e crianças indígenas, que são abusadas em troca de comida.

Mais adiante, em agosto, a Apib protocolou mais uma petição, desta vez afirmando que a União não disponibilizou as bases de dados epidemiológicos da vigilância da Covid-19 no que tange aos povos indígenas, dessa forma descumprindo a ordem judicial dada pelo ministro Barroso em março, referida acima. Ainda no mês 08, foi requerida ao STF a determinação da retirada de invasores e a instalação de bases permanentes do Ibama e da Força Nacional de Segurança Pública na Terra Indígena Apyterewa, localizada no município São Félix do Xingu, no Pará. No dia 18 de maio, um grupo de fazendeiros havia invadido a TI, colocado gado e passado a ameaçar os indígenas da região.

Ao final do mês de junho, no contexto da morte de Bruno e Dom, a Apib e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) também entraram com uma nova Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF para pedir medidas urgentes de proteção aos povos indígenas isolados e de recente contato. A ação (ADPF 991) foi movida pelo risco de genocídio que sofrem diversos desses povos e pediu que a Corte tome medidas estruturais para o fim da política de anti-indígena de Bolsonaro dentro da Funai. Foram denunciados o sucateamento e aparelhamento de entidades estatais especializadas em prover proteção para os povos isolados, como as Frentes e Bases de Proteção Etnoambiental, a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados.

Em novembro, o Ministro Relator da ação, Luiz Edson Fachin, concedeu liminar a favor da proteção dos povos isolados. O Ministro acatou algumas providências como, por exemplo, a determinação para que o Governo Federal adote todas as medidas necessárias para garantir a proteção integral dos territórios com a presença de povos isolados, garantindo que as portarias de restrições de uso sejam sempre renovadas antes do término da sua vigência e até que a terra seja efetivamente demarcada. Outro pedido acatado foi a definição do prazo de 60 dias para a União elaborar um plano de ação para a regularização e proteção das terras indígenas.

No âmbito dessa mesma ação, a Apib protocolou, em outubro, uma petição pedindo que o Governo Federal dê esclarecimentos sobre a morte do indígena de Tanaru, também conhecido como “Índio do buraco”. O indígena era o último do seu povo, vivia em isolamento voluntário e foi encontrado morto por um servidor da Funai na sua maloca na Terra Indígena Tanaru, em Rondônia, no dia 23 de agosto de 2022. Foi solicitado que a União prestasse informações detalhadas sobre o caso e apresentasse qual destinação seria dada à TI, protegida por uma Portaria de Restrição de Uso.

CENÁRIO INTERNACIONAL

1. COMITIVAS INTERNACIONAIS

Durante todo o ano de 2022, a Apib enviou diversos representantes e comitivas a outros países para incidir junto a diversas entidades e instituições no que tange à causa indígena e ambiental. Lideranças indígenas do Brasil visitaram países da União Europeia ao longo do mês de junho, como parte da estratégia de responsabilizar governos e empresas por ameaças à proteção de seus territórios, assim como para reforçar a denúncia no Tribunal Penal Internacional (TPI) contra o governo Bolsonaro por Genocídio e Crimes contra a Humanidade.

A delegação da Apib, composta por sete lideranças indígenas, representando todas as regiões do Brasil, visitou a França e a Bélgica, se reunindo com Comissões do Parlamento Europeu, com o Departamento Ambiental parlamentar e com membros do Partido Verde Alemão. Também foram acompanhados os atos e investigações do grupo francês de supermercados Casino por falta de rastreabilidade de certos produtos com proveniência de terras desmatadas ou griladas no Brasil. Tais eventos são de grande relevância, pois a Europa é o segundo maior mercado de venda da soja produzida no Brasil e um importante importador de carne bovina brasileira.

Em sua incidência junto ao Parlamento Europeu, os representantes da Apib trataram da lei sobre importação de produtos com risco florestal (FERC – Forest and ecosystem-risk commodities). A lei antidesmatamento, como também é conhecida, prevê regulações sobre commodities (como carne, couro e madeira) oriundos do desmatamento e da degradação florestal. Neste sentido, a solicitação das lideranças aos parlamentares europeus foi de que todos os biomas fossem abrangidos pela proposta, assim como o respeito aos tratados e acordos internacionais que protegem os direitos humanos e indígenas. Tais medidas seriam uma resposta concreta à emergência climática e aos casos de violência nos territórios ancestrais. No entanto, a União Europeia aprovou a referida lei no dia 06 de dezembro, negando a inclusão de todos os biomas na lei. Também não foram reconhecidos os direitos internacionais dos povos indígenas, que haviam sido incluídos na proposta durante uma votação no mês de setembro. A lei entrará em vigor em 2023, mas passará antes por um período de transição de 18 meses, obrigando as empresas a cumprir suas exigências somente em 2025.

Em setembro, lideranças da Apib também participaram da Semana Climática de Nova York, nos Estados Unidos. Composta por cinco representantes da região Norte e Nordeste do país, a delegação denunciou para lideranças mundiais os ataques à vida e aos territórios dos povos indígenas provocados pelo Estado brasileiro. além de reforçar a importância da demarcação de terras indígenas no combate às mudanças climáticas. Em paralelo à Semana Climática, ocorreu também em Nova York a Assembleia Geral da ONU, com participação do presidente Bolsonaro. Tal momento foi uma oportunidade para expor os retrocessos da agenda anti-indígena e ambiental do atual governo por meio de um protesto em frente ao Consulado do Brasil em Nova York.

em novembro, a Apib enviou uma nova delegação à Europa, buscando justamente fortalecer a denúncia contra Bolsonaro no TPI. Dessa vez, representantes do Departamento Jurídico da organização participaram de diversos eventos na Inglaterra, Suíça, França e Holanda, incluindo uma sessão da Revisão Periódica Universal (RPU) na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), e reunião com escritório da Procuradoria do TPI e conferências na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e na King’s College de Londres, dentre outros.

No mesmo mês, um dos coordenadores executivos da Apib, Kretã Kaingang, representou os povos originários em delegação formada por cinco integrantes de movimentos populares brasileiros que também foram à Europa, mas para debater a política ambiental do acordo Mercosul-União Europeia, passando por Holanda, Bélgica, Alemanha, França e Áustria. Os impactos da mineração em terras indígenas e em áreas ocupadas pela agricultura familiar foram uma das principais questões abordadas durante os encontros com as autoridades. O referido acordo foi assinado em junho de 2019 e prevê o livre comércio entre os dois blocos, mas ainda não entrou em vigor porque as posturas do governo brasileiro em relação ao meio ambiente, a exemplo de proposições legislativas antiambientais e anti indígenas, não se adequaram às exigências de outros países e geraram entraves para as negociações.

A Apib também esteve presente na 27ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP27), no Egito, com lideranças indígenas de todas as regiões do Brasil para pautar a demarcação de Terras Indígenas no país como ação essencial no enfrentamento da crise global. Entre os 12 dias de programação da COP27, a Apib esteve em mais de mais de 30 atividades com a sociedade civil, poder público, financiadores, negociadores e imprensa. Durante o painel, a coordenação executiva da Apib falou inclusive sobre a necessidade de se incluir todos os biomas do Brasil na Lei anti desmatamento da União Europeia.

A conferência ocorreu logo após a vitória de Lula nas eleições presidenciais, colocando o Brasil de volta na agenda climática e ambiental, principalmente no cenário internacional. A COP27 também acontece após a Noruega anunciar que vai retomar o Fundo Amazônia, programa de cooperação internacional que destinava ajuda financeira ao Brasil para reduzir o desmatamento. O Fundo foi criado durante o governo Lula, mas em 2019 Bolsonaro impôs novas exigências que fizeram com que a Noruega e a Alemanha encerrassem transferências de recursos que chegavam a até US$ 1 bilhão. A proposta de retomada do Fundo Amazônia só foi possível com a eleição de Lula, que tem entre as suas promessas zerar o desmatamento na Amazônia, respeitar os povos originários e recuperar o protagonismo do país na luta pela justiça climática. Neste sentido é que um governo comprometido com estas pautas traz alívio e otimismo para ativistas e organizações indígenas.

Uma delegação da Apib, composta por cinco lideranças, também marcou presença na Convenção sobre Diversidade Biológica (COP15), no Canadá, em dezembro. Neste evento, que aconteceu depois de dois anos sem a realização do encontro devido à pandemia de Covid19, os representantes indígenas também pautaram a demarcação das Terras Indígenas (TIs) como prioridade, mas, desta vez, para conservar ao menos 30% dos ecossistemas e recuperar terras degradadas no mundo até 2030. O evento se iniciou exatamente um dia após a aprovação da lei antidesmatamento pelo Parlamento Europeu, o que gerou ainda mais atenção para a questão.

2. DENÚNCIAS EM INSTÂNCIAS INTERNACIONAIS

No mês de junho a Apib apresentou novas denúncias contra Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional (TPI), atualizando a denúncia realizada em agosto de 2021, na qual se atribuiu a Jair Bolsonaro a responsabilidade pela prática de crime de genocídio e de crimes contra a humanidade por extermínio, perseguição e outros atos desumanos. Dessa vez os fatos referem-se ao período de janeiro a maio de 2022, incluindo a negligência nas buscas por Bruno da Cunha Araújo Pereira e Dom Phillips e a barbárie no território Yanomami. Foram ressaltadas a persistência e a intensificação da política anti-indígena de Jair Bolsonaro, com agravamento dos seus efeitos sobre os povos indígenas.

Nessa mesma esteira, no dia 1º de setembro, Bolsonaro foi condenado pelo Tribunal Permanente dos Povos (TPP) por crimes contra a humanidade cometidos durante a pandemia de Covid-19. Em maio, Bolsonaro havia sido denunciado ao TPP pela APIB, em conjunto com a Coalizão Negra por Direitos, a Internacional de Serviços Públicos (PSI) e a Comissão Arns. A sessão aconteceu nos dias 24 e 25 de maio de 2022, em formato híbrido, simultaneamente em São Paulo e em Roma, mas a sentença foi proferida somente em setembro. O júri foi presidido pelo ex-juiz italiano Luigi Ferrajoli, professor catedrático da Universidade de Roma, e contou com a participação de doze membros de nacionalidades distintas, composto por especialistas reconhecidos na área do Direito, das ciências sociais e da saúde global.

Apesar de não possuir efeito legal, o tribunal simbólico e de efeito político acaba influenciando outras instituições e serve como termômetro da opinião pública internacional sobre o governo brasileiro. Foi criado em 1979, em Roma, e é herdeiro do Tribunal Russell, constituído em 1966 para investigar crimes e atrocidades na guerra do Vietnã. O TPP tem sido uma das expressões mais ativas de mobilização e articulação em defesa da Declaração Universal dos Direitos dos Povos, contando com participação de entidades e movimentos sociais contra violações praticadas por autoridades públicas e agentes privados, tendo como principal objetivo gerar verdade, memória e reparação moral.

Em novembro, foi levada à Organização das Nações Unidas (ONU) uma denúncia contra Jair Bolsonaro por destruição do meio ambiente e violações a direitos humanos. O documento, elaborado em conjunto com a Conectas Direitos Humanos, o Instituto Socioambiental (ISA), Observatório do Clima e o WWF-Brasil, foi entregue aos relatores especiais da ONU responsáveis pelo acompanhamento de temas relacionados a meio ambiente, direitos indígenas, mudanças climáticas, alimentação, água potável e saneamento, desenvolvimento, moradia, além da coordenadora do grupo de trabalho sobre direitos humanos e empresas. Nele, foi solicitado que o governo brasileiro interrompa a destruição ambiental no Brasil, respeite os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais e adote ambições maiores em seus compromissos de redução de emissões.

No que tange ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SIDH), a Apib realizou diversas incidências. Em agosto, a Apib participou de audiência inédita da Corte Interamericana dos Direitos Humanos, realizada no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, a respeito dos povos indígenas isolados, o que representou mais um passo para a criação de um marco regulatório para estas populações, presentes em sete países da América do Sul. Já em outubro, a Apib fez parte de outra audiência pública, desta vez online e com o objetivo de apresentar informações atualizadas sobre a situação dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. Na ocasião, as organizações brasileiras falaram sobre a escalada de violências que os povos originários do Brasil estão enfrentando em decorrência das eleições gerais e dos projetos de lei da agenda anti-indígena do Governo Bolsonaro que tramitam no Congresso Nacional.

A Apib também acompanha alguns casos que tramitam nos dois órgãos do Sistema Interamericano: a Comissão (CIDH) e a Corte (CIDH) Interamericanas de Direitos Humanos. No âmbito da primeira, dá-se destaque para medida cautelar que a CIDH concedeu em outubro em favor da comunidade Guapo’y, do povo Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, solicitando que o Estado Brasileiro proteja o direito à vida e à integridade dos indígenas que vivem no local. A medida é resultado de uma solicitação apresentada pela própria Apib, em conjunto com a Aty Guassu e a organização Conectas Direitos Humanos. Devido aos fatos ocorridos em junho, foram acionados a respeito da situação, além da CIDH, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a Relatoria Especial para os Direitos dos Povos Indígenas, os Peritos da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas e o Ministério Público Federal (MPF).

Composta por cerca de 300 pessoas, há décadas a comunidade Guapo’y busca a retomada definitiva do seu território ancestral, onde fazendeiros obtiveram a propriedade destas terras. O povo Guarani Kaiowá também enfrenta atuações ilegais da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul que, de 2018 a 2022, já realizou cerca de cinco ataques contra a comunidade sem qualquer decisão judicial. Em junho de 2022, os indígenas reiniciaram o movimento de retomada quando a PM, com um efetivo de 100 polícias e um helicóptero, atirou bombas de águas lacrimogêneas e disparou armas de fogo contra o grupo, sem nenhuma tentativa de mediação. O caso deixou um indígena morto e 10 feridos, dentre os quais idosos e crianças.

Por sua vez, no mês de julho a Corte Interamericana concedeu medidas provisórias em favor os povos indígenas Yanomami, Ye’kwana e Munduruku, determinado que o Estado brasileiro deve adotar as medidas necessárias para garantir a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e à água potável aos povos, além de tomar providências para evitar a exploração e a violência sexual contra as mulheres e crianças, bem como prevenir a disseminação da Covid-19 nas aldeias. Tal medida é decorrente de pedido da CIDH à CtIDH, tendo em vista medidas cautelares referentes a esses povos que já tramitavam na Comissão Interamericana, devido ao grave e urgente risco que enfrentavam no contexto da pandemia de COVID-19, e agora se converterem em medidas provisórias da Corte.

Durante a vigência das medidas cautelares, a Comissão recebeu informação que indica o aumento exponencial da presença de terceiros não autorizados nas referidas terras indígenas, principalmente realizando garimpo e exploração de madeira. Nesse contexto, a CIDH observou que os indígenas Yanomami, Ye`kwana e Munduruku estão expostas a ameaças e ataques violentos, incluindo a violação sexual, afetações à saúde pela disseminação de doenças, como a malária e a COVID-19, em um contexto de debilidade da atenção médica, e alegada contaminação por mercúrio, derivada do garimpo na região. A informação apresentada indica que os atos de violência, assassinatos e ameaças continuam nas comunidades indígenas, inclusive se agravando, o que levou a Comissão a solicitar à Corte IDH que outorgasse medidas provisórias e que ordenasse ao Estado do Brasil proteger os propostos beneficiários.

PAUTA AMBIENTAL

Dentro da pauta ambiental, uma das principais incidências da Apib foi o lançamento do relatório “Cumplicidade na Destruição IV – Como mineradoras e investidores internacionais contribuem para a violação dos direitos indígenas e ameaçam o futuro da Amazônia”. Esta é a 4ª edição da publicação lançada pela Apib em parceria com a organização Amazon Watch. O documento foca nos interesses minerários em terras indígenas de nove mineradoras: Vale, Anglo American, Belo Sun, Potássio do Brasil, Mineração Taboca e Mamoré Mineração e Metalurgia (ambas do Grupo Minsur), Glencore, AngloGold Ashanti e Rio Tinto. Juntas, elas possuíam em novembro de 2021 um total 225 requerimentos minerários ativos com sobreposição em 34 Terras Indígenas – uma área que corresponde a 5,7 mil quilômetros quadrados – ou mais de três vezes a cidade de Brasília ou de Londres.

Apesar dos anúncios de grandes mineradoras de que abandonariam seus interesses em territórios indígenas, milhares de requerimentos minerários com interferências nessas áreas seguiram ativos na base de dados da Agência Nacional de Mineração (ANM). A abertura de terras indígenas para a mineração e o garimpo está no centro da agenda do governo Bolsonaro e, com o avanço no Congresso de projetos de lei como o PL 191/2020 e o PL 490/2007, esses requerimentos podem garantir às mineradoras prioridade na exploração desses territórios.

O relatório ainda detalha, em estudos de caso, os impactos e as violações de direitos protagonizados por cinco dessas mineradoras, resgatando as trajetórias desses conflitos e seus desdobramentos atuais, que vão desde a invasão de territórios tradicionais à contaminação por metais pesados e ao desrespeito ao direito de consulta e consentimento livres, prévios e informados. A partir de testemunhos das comunidades afetadas que desafiam as declarações oficiais das empresas sobre sua atuação, a publicação mostra como a presença e a atuação dessas corporações desfigura para sempre a vida desses povos e comunidades e podem contribuir efetivamente para a destruição dos ecossistemas e para o aprofundamento das mudanças climáticas.

Em 2022, a Apib também incidiu como amicus curiae (amigo da Corte) em diversas ações jurídicas com temática ambiental no Supremo Tribunal Federal. Em março, Luiz Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib, fez sustentação oral no STF no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Nº 760, ação socioambiental já considerada histórica por ser uma das mais completas e importantes já apresentadas na corte sobre o tema, na qual se pede que o Tribunal determine a retomada do cumprimento de metas estabelecidas pela legislação nacional e acordos internacionais assumidos pelo Brasil sobre mudanças climáticas. Em seu pronunciamento, o advogado indígena destacou a função essencial de regulação climática das terras indígenas, e o risco iminente de genocídio de povos indígenas isolados no país.

Em abril, durante o Acampamento Terra Livre (ATL), a APIB solicitou ingresso no Mandado de Injunção n. 7369, proposta pela Sociedade de Defesa dos índios Unidos de Roraima, visando combater o garimpo em terras indígenas. Dentre as diversas informações apresentadas, a organização indígena apresentou dados do “Relatório Cumplicidade na Destruição IV”. Já em maio, em conjunto com outras entidades, foi apresentada petição de ingresso como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) Nº 6.528, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro no STF, com o objetivo de questionar a constitucionalidade do inciso IX do artigo 3º da citada Lei 13.874/2019 que estabelece que, transcorrido o prazo máximo definido e apresentados os elementos necessários, será concedida aprovação tácita do pedido de liberação da atividade econômica, mesmo no caso de haver impacto socioambiental. Segundo a Apib, a aprovação tácita de atos de órgãos como a Funai viola a proteção conferida aos povos e terras indígenas, pois admite que o Estado emita atos administrativos que afetem essas comunidades sem a consulta prévia, livre e informada dos povos e comunidades afetadas.

CAMPANHA INDÍGENA – ALDEAR A POLÍTICA

A Apib lançou, neste ano, uma mobilização em todo o território nacional por meio da Campanha Indígena, projeto com o objetivo de “Aldear a Política”, fortalecendo e apoiando candidaturas indicadas pelas bases em todo o Brasil. Desde 2017, a Apib vem estimulando de forma mais direta a participação de lideranças indígenas na Política, mas, em 2022, a organização lançou pela primeira vez sua Bancada Indígena com 30 candidaturas de todas as regiões.,
Do total de postulantes indígenas, 12 candidaturas concorreram a vagas de deputado federal e 18 a cadeiras em Assembleias de 20 estados diferentes. A maior quantidade de candidatos apoiados pela Campanha Indígena esteve concentrada nos Estados que integram a Amazônia Legal, nas duas esferas de disputa proporcional e tiveram a indicação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

O número de candidatos indígenas nas eleições de 2022 registrou um aumento de 115% desde 2014, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a registrar dados como cor e raça dos candidatos. Pelo histórico de registro das candidaturas proporcionais e majoritárias em âmbito estadual e federal, o número de pessoas que se afirmaram indígenas passou de 85 em 2014 para 133 em 2018 e 183 neste ano, segundo dados do TSE. Esse foi o maior quantitativo de indígenas concorrendo a vagas eletivas na história do Brasil.

Já o número de candidaturas indígenas femininas quase triplicou em duas eleições, passando de 29 em 2014 para 85 em 2022, segundo registro do sistema do TSE. No primeiro ano, elas representavam 0,36% do total de 8.123 candidaturas femininas. Neste ano, elas somam 0,88% do total de 9.597 mulheres candidatas e o aumento entre as indígenas é de 193%. Além disso, das 30 candidaturas que compõem a Bancada Indígena a maioria é de mulheres, totalizando 16 candidaturas femininas.

Reforçamos ainda o resultado histórico para o movimento indígena nessas eleições. Os estados de São Paulo e Minas Gerais elegeram respectivamente Sônia Guajajara e Célia Xakriabá como representantes no Congresso Nacional, mais especificamente, na Câmara dos Deputados. O saldo representa um crescimento de 100% em relação à última eleição proporcional, em 2018, quando a deputada federal Joênia Wapichana tornou-se a primeira mulher indígena eleita como deputada federal.

Também vale ressaltar que as candidaturas que fizeram parte da Bancada Indígena da Apib obtiveram mais de 446 mil votos nas urnas. É possível que tal número tivesse sido ainda maior caso não tivessem ocorrido óbices ao exercício dos direitos políticos dos povos indígenas. A Apib recebeu diversas denúncias e relatos de comunidades que sofreram o cerceamento do direito ao voto pela falta de transporte e ameaças relacionadas à disputa de território, anteriores ao período eleitoral, que, em alguns casos, chegaram ao ponto de isolar aldeias em um cerco armado. Diante disso, a organização solicitou ao TSE que os Tribunais Regionais Eleitorais dos estados, as zonas e os cartórios eleitorais dos municípios fossem notificados quanto à providência de medidas de apoio logístico necessárias para garantir a segurança e o transporte para o exercício do voto pela população indígena em todo o território nacional durante o segundo turno das Eleições 2022.

GRUPO TÉCNICO POVOS INDÍGENAS – GOVERNO DE TRANSIÇÃO

Após a vitória de Lula no dia 30 de outubro, a Articulação iniciou ações de reconstrução da agenda indígena no Governo Lula. O primeiro passo foi a realização de mais uma edição da reunião do Fórum Nacional de Lideranças Indígenas, realizado entre os dias 3 e 5 de novembro em Brasília. Na ocasião, cerca de 60 representantes das sete organizações regionais que compõem a Apib discutiram ações significantes que balizaram a criação de um plano de governança indígena para os 100 primeiros dias de Governo Lula, tendo como norte a importância da participação do movimento indígena nos espaços de decisão, como na transição de governo e demais partes da estrutura governamental dos próximos quatro anos.

O plano teve como base as propostas apresentadas na Carta aberta do Acampamento Terra Livre 2022 a Lula, à época pré-candidato à presidência do Brasil, bem como o documento Brasil 2045 – Construindo uma Potência Ambiental, Vol 1 – propostas para política Ambiental Brasileira, elaborado pelas organizações que integram o Observatório do Clima, dentre elas a Apib. O documento é dividido em seis eixos, sendo eles: 1. Direitos Territoriais Indígenas: Demarcação e Proteção Territorial; 2. Re-estabelecimento de/ou criação de instituições e políticas sociais para povos indígenas; 3. Retomada e/ou criação de instituições e espaços de participação e/ou controle social; 4. Agenda Legislativa: interrupção de iniciativas anti-indígenas no congresso e ameaças no judiciário; 5. Agenda ambiental e 6. Articulação e incidência internacional e composição de alianças e parcerias.

Além da construção do plano de governança, no encontro as lideranças estabeleceram a criação de um grupo de trabalho que acompanhasse a transição presidencial e a subsidiasse com as propostas do movimento. Para que representantes indicados pela Apib fizessem parte do GT, no entanto, foi necessário fazer pressão.

Durante quatro semanas, entre novembro e dezembro, integrantes do Grupo Técnico Povos Indígenas se reuniram de forma virtual e presencial no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), em Brasília, para analisar a atual situação da política indigenista do Estado brasileiro e definir medidas a serem tomadas pelo novo governo. Lideranças indígenas, servidores da Funai, juristas, procuradores, advogados e organizações e comitivas indigenistas também foram recebidas pelo GT em oitivas que tinham o objetivo de ampliar e enriquecer o debate e a construção do relatório final. As oitivas trataram de temas específicos como as pautas das mulheres, juventude, saúde e educação.

No dia 12 de dezembro, o Grupo Técnico Povos Indígenas entregou o seu relatório final para o gabinete de transição do Governo Lula. O documento pede a revogação de leis anti-indígenas e indica pontos de alerta para o novo governo. Entre os atos normativos anti-indígenas indicados para serem revogados imediatamente está o parecer normativo 001/2017, publicado pelo ex-presidente Michel Temer, que prevê o Marco Temporal. Além da revogação deste parecer, mais seis atos normativos devem ser revogados imediatamente e outros quatro durante os 100 primeiros dias de Governo Lula. Um exemplo disso é o Decreto 10.965 que facilita a mineração dentro de Terras Indígenas e a Portaria 3.021 do Ministério da Saúde que determina a exclusão da participação social nos Conselhos Distritais de Saúde Indígena.
O relatório apresentado também possui 12 pontos de alerta que devem ser observados pelo Governo Lula. Destaca-se a demarcação de 13 terras indígenas que devem ser homologadas nos primeiros 30 dias de governo, pois não apresentam nenhuma pendência jurídica e estão prontas para terem o processo de demarcação concluído.

Outra questão relevante aos povos indígenas no novo governo diz respeito à promessa de campanha do presidente eleito de criar um ministério para os povos indígenas, realizada em passagem de Lula no Acampamento Terra Livre, em abril deste ano, e reiterada em seu pronunciamento durante a COP 27. Durante as últimas semanas, tal promessa acabou sendo alvo de polêmicas, tendo em vista declaração do novo presidente de que talvez o ministério na verdade se tornasse uma secretaria especial ligada à Presidência.

Além disso, havia a incerteza a respeito do protagonismo dos povos indígenas no comando da pasta. Neste sentido é que a Apib encaminhou a Lula uma carta aberta contendo a indicação de uma lista tríplice para o Ministério dos Povos Indígenas, com os nomes a seguir: Sonia Guajajara, Joenia Wapichana e Weibe Tapeba.

Tal posicionamento da Apib decorreu da crença da importância da escuta e participação do movimento indígena nesse momento de reconstrução da democracia no Brasil, após o Golpe de 2016 e os anos de política de morte dos últimos quatro anos. Decorreu, também, da crença de que o Governo Lula será participativo e estará atento aos anseios do movimento indígena, que luta pelo fortalecimento dos direitos dos povos originários. Em 29 de dezembro, o presidente Lula anunciou Sonia Guajajara para comandar o Ministério dos Povos Indígenas, representando um momento histórico de princípio de reparação no Brasil.

APIB 2022: Mobilizações, Campanha Indígena e luta por direitos

APIB 2022: Mobilizações, Campanha Indígena e luta por direitos

O ano de 2022 se mostrou estratégico para os Povos Indígenas. Mobilizações nos territórios, nas redes sociais e nas cidades, pautaram a importância da representatividade indígena na sociedade, da demarcação das Terras Indígenas e do enfrentamento das violências e do racismo. 

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) promoveu, junto com suas organizações regionais de base, mais de 30 ações chave dentro e fora do Brasil, ao longo do ano de 2022.  A maior mobilização indígena da história, em Brasília, foi realizada durante a 18a edição do Acampamento Terra Livre, com a participação de oito mil pessoas de mais de 200 povos de todas as regiões do Brasil. 

O encontro proporcionou um realinhamento das organizações indígenas dentro do calendário eleitoral para apoiar Lula, tirar Bolsonaro do poder e articular a Campanha Indígena para “Aldear a Política’’ e ampliar a participação de lideranças nos parlamentos e poderes executivo.  

As organizações regionais  que compõem as bases da Apib fortaleceram suas ações com assembleias e recompondo o Fórum de Lideranças Indígenas da Apib.  APOINME,  ATY GUASU, ARPIN SUDESTE,  ARPINSUL, Comissão Guarani Yvyrupa, Conselho do Povo Terena e COIAB mobilizaram o movimento indígena para ampliar as incidências políticas, jurídicas e de comunicação dentro e fora do Brasil. 

A Apib enfrentou o racismo ambiental para seguir pautando mundo afora o reconhecimento dos povos e da demarcação das Terras Indígenas no enfrentamento da crise climática. “Fomos para semana do clima, nos Estados Unidos, para a COP 27, no Egito, estivemos também na COP15 da Biodiversidade, no Canadá e seguimos lutando para que leis internacionais, como a do Anti Desmatamento do Parlamento Europeu, reconheçam os direitos dos povos indígenas e a proteção de todos os biomas nas suas legislações”, reforçou Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib.

O Ministério Indígena, inédito na história do Brasil, foi anunciado por Lula durante o ATL 2022 e é o resultado concreto da luta que vem sendo articulada pelo Movimento Indígena ao longo dos últimos anos com mobilizações e estratégias de ocupação de espaços que assegurem as bandeiras prioritárias dos povos. 

A construção da representatividade na política institucional é articulada pela Apib com a Campanha Indígena, um processo que iniciou em 2017,  com o lançamento de uma carta aberta “Por um parlamento cada vez mais indígena”. Em 2022, a Apib lançou pela primeira vez a Bancada Indígena com 30 candidaturas, que juntas obtiveram 500 mil votos e pautaram o debate público sobre os povos indígenas dentro do calendário eleitoral

Sônia Guajajara e Célia Xakriabá elegeram-se pelos maiores colégios eleitorais do País, São Paulo e Minas Gerais, respectivamente, dobrando o número de vagas ocupadas por indígenas na Câmara Federal, que nos últimos quatro anos foi representada por Joenia Wapichana. 

Para além do resultado eleitoral, o alcance político da mensagem registrou 4.229.117 milhões de pessoas alcançadas por meio das mídias digitais da Apib. Dentro do plano de trabalho adotado pela Campanha Indígena esteve ainda a parceria com indígenas influencers, a distribuição de conteúdo informativo para Eleitores e Candidatos, incluindo uma cartilha orientativa sobre as regras eleitorais, além de conteúdo combate à desinformação entre os grupos que integram as redes Apib e tuitaços articulados com organizações parceiras.  

Cerco à boiada

O chamado “Pacote de Destruição” se configurou como a principal ameaça a ser enfrentada pelo Movimento Indígena no Congresso Nacional ao longo de 2022, o que incluiu, além do PL 191/2020, que regulamenta mineração em terras indígenas, também os projetos de lei nº 2.159, que altera as regras do licenciamento ambiental; o de nº 2.633 e de nº  510, que tratam da grilagem de terras públicas; e o nº 490, que altera a legislação da demarcação de terras indígenas, a partir da tese do Marco Temporal, que passa a exigir dos povos originários uma comprovação de posse anterior à data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, para ter direito à terra. 

A Apib acessou a justiça federal para denunciar as medidas e normativas anti indígenas feitas pela Funai do delegado Marcelo Xavier e seguiu acompanhando a denúncia internacional feita contra Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional. No Supremo Tribunal Federal (STF) a Apib protocolou uma nova Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para proteção dos povos que vivem em isolamento voluntário. O Ministro Edson Fachin decidiu, liminarmente, em favor do pedido, em novembro.

O departamento jurídico da Apib também fortaleceu a iniciativa do Observatório  Sistema de Justiça Criminal e Povos Indígenas para enfrentar a criminalização de lideranças e organizações indígenas. O Tribunal Permanente dos Povos foi outra iniciativa encampada pela Apib para responsabilizar a atuação de Bolsonaro na pandemia. 

Violências

A Apib promoveu denúncias ao desmonte articulado pelo Governo Federal na Saúde Indígena e na proteção dos territórios. No período eleitoral a violência foi agravada. Assassinatos contra o povo Guarani Kaiowá, em Mato Grosso do Sul. Milícia bolsonarista matou criança Pataxó de 14 anos com tiro na cabeça, na Bahia, e uma liderança Yanomami foi assassinada no primeiro turno das eleições, em Roraima. 

Em 2022, um levantamento feito pela Apib denuncia que no período eleitoral, entre junho e setembro, nove indígenas foram mortos em conflitos territoriais. Além de Vitor Fernandes, Márcio Moreira, Janildo Oliveira, Jael Carlos Miranda e Gustavo Silva da Conceição, Edinaldo Manoel de Souza, do povo Atikum, Eliseu Kanela, do povo Kanela, Cleomar Yanomami e Alex Recante Vasques Lopes, do povo Guarani Kaiowá, também foram assassinados neste período. 

As mortes representam pouco mais da metade dos casos de assassinatos ocorridos em todo o ano de 2021, quando 10 indígenas morreram em conflitos no campo no Brasil, segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT). 

“Há mais de 500 anos os povos originários do Brasil tem lutado contra o genocídio, mas nos nos últimos quatro anos isso ficou ainda pior com o desgoverno Bolsonaro. Ele e seus aliados incentivam a invasão dos territórios indígenas a todo momento e a disputa eleitoral tem intensificado isso. Em menos de dois dias, três parentes foram mortos e outros tantos ficaram feridos”, afirma Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib. 

Participação

Pela primeira vez na história do Brasil, os povos indígenas tiveram voz ativa dentro do Governo de Transição. A Apib integrou o grupo de trabalho que apontou caminhos e alertas para a reconstrução das políticas públicas sobre povos indígenas no Governo Lula. 

Foram apontadas a necessidade de homologar 13 Terras Indígenas, ainda no primeiro mês de Governo e retomar o processo de demarcação das demais Terras que ficaram parados e precisam avançar nas fases dos processos demarcatórios. A recomposição do orçamento da saúde indígena e da Fundação Nacional do Índio (Funai) e a retirada urgente de invasores das Terras Indígenas também foram apontadas como prioridades no relatório final.

Outro ponto de atenção foi o pedido de revogação de atos normativos e decretos, entre eles, o parecer normativo 001/2017, publicado pelo ex-presidente Michel Temer, que prevê o Marco Temporal e o Decreto 10.965, que facilita a mineração dentro de Terras Indígenas, além da Portaria 3.021 do Ministério da Saúde que determina a exclusão da participação social nos Conselhos Distritais de Saúde Indígena. Outros sete atos foram listados como prioritários para revogação. 

Governo Lula confirma Ministério dos Povos Indígenas e Sônia Guajajara assume a pasta

Governo Lula confirma Ministério dos Povos Indígenas e Sônia Guajajara assume a pasta

Para a Apib, a criação do Ministério e nomeação de uma liderança indígena para o cargo de ministra é uma conquista histórica

O presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), confirmou nesta quinta-feira (29/12) a criação do Ministério dos Povos Indígenas, considerado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) uma conquista histórica do movimento indígena brasileiro. Além disso, Lula anunciou que o ministério será comandado por Sônia Guajajara, ex-coordenadora executiva da Articulação e eleita deputada federal pelo estado de São Paulo.

A criação do Ministério dos Povos Indígenas foi prometida por Lula, se eleito, durante a 18ª edição do Acampamento Terra Livre, em abril, onde mais de 8 mil indígenas participaram da maior mobilização indígena do país.

A Apib ressalta que a pasta foi construída e pensada por lideranças de diferentes povos nas reuniões do Grupo Técnico Povos Indígenas do gabinete de transição governamental, do qual a Articulação fez parte. O grupo também promoveu oitivas com representantes de organizações e comunidades de todas as regiões.

“A participação do movimento indígena na transição governamental, na construção do Ministério e na recomposição da Sesai e Funai é histórica na luta dos povos indígenas no Brasil. Vamos continuar acompanhando de perto esse processo e participando de maneira efetiva, sempre fortalecendo e cobrando melhores políticas públicas do governo para os indígenas”, diz Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib e do GT.

Sônia Guajajara assume ministério

A nomeação de Sônia Guajajara para o Ministério dos Povos Indígenas é resultado da lista tríplice da Apib para assumir o comando da pasta. Com o objetivo de assegurar a autodeterminação dos povos e a garantia de condições de vida, saúde e educação para os povos originários, no dia 12 de dezembro a Apib publicou a carta aberta “Nossa União para reconstruir o Brasil indígena”.

Apresentada para Lula, a carta possuía três indicações para o ministério: Joenia Wapichana, deputada federal por Roraima e primeira mulher indígena a ocupar o cargo; Weibe Tapeba, liderança com vasta participação nas políticas indígenas e vereador de segundo mandato na cidade de Caucaia (CE); e Sônia Guajajara.

Internacionalmente reconhecida por sua luta em defesa dos direitos dos povos indígenas, causas socioambientais e climáticas, Sônia é do povo Guajajara/Tentehar da Terra Indígena Araribóia, no estado do Maranhão. Ela fez parte da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e atuou como coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

Além disso, foi a primeira deputada indígena eleita no estado de São Paulo e integrou o GT Povos Indígenas do gabinete de transição. Ela também é conselheira da Iniciativa Inter-Religiosa pelas Florestas Tropicais, conselho vinculado à ONU, e apontada como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2022 pela revista americana Time.

Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib, reforça que a criação do Ministério dos Povos Indígenas ocorreu de forma gradativa e que os nomes indicados na lista tríplice foram escolhidos de forma democrática.
“Precisamos nos manter unidos. Sabemos o quanto foi sofrido nesses quatros anos com Bolsonaro, mas a luta continua e juntos seremos ainda mais fortes na reconstrução do Brasil indígena”, afirma Tuxá.

Sobre a Apib
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) foi criada pelo movimento indígena no Acampamento Terra Livre de 2005. A Apib é uma instância de referência nacional do movimento indígena no Brasil, que aglutina organizações regionais indígenas. Ela nasceu com o propósito de fortalecer a união dos povos, a articulação entre as diferentes regiões e organizações indígenas do país, além de mobilizar os povos e organizações indígenas contra as ameaças e agressões aos direitos indígenas.

Em 2022, a Apib atuou de forma intensa na reconstrução do Brasil e da pauta indígena por meio da 18ª edição do Acampamento Terra Livre e do lançamento da Campanha Indígena, no qual juntos os candidatos indígenas obtiveram 500 mil votos. A Articulação também atuou na transição governamental com o GT Povos Indígenas e o Fórum Nacional de Lideranças Indígenas.

Apib condena norma da Funai e do IBAMA que permite exploração madeireira em Terras Indígenas

Apib condena norma da Funai e do IBAMA que permite exploração madeireira em Terras Indígenas

NOTA TÉCNICA N. 05/2022 – AJUR/APIB

EMENTA: INSTRUÇÃO NORMATIVA CONJUNTA N. 12/2022 – IBAMA E FUNAI. ESTABELECE AS DIRETRIZES E OS PROCEDIMENTOS PARA ELABORAÇÃO, ANÁLISE, APROVAÇÃO E MONITORAMENTO DE PLANO DE MANEJO FLORESTAL SUSTENTÁVEL (PMFS) COMUNITÁRIO PARA A EXPLORAÇÃO DE RECURSOS MADEIREIROS EM TERRAS INDÍGENAS. ATO NORMATIVO QUE AFETA DIREITOS E INTERESSES DOS POVOS INDÍGENAS. AUSÊNCIA DE CONSULTA. OFENSA A CONVENÇÃO 169 DA OIT. VIOLAÇÃO A PRECEITO FUNDAMENTAL DOS POVOS INDÍGENAS: USUFRUTO EXCLUSIVO DAS RIQUEZAS DO SOLO, DOS RIOS E DOS LAGOS NELAS EXISTENTES.

1. A Coordenação Executiva da APIB solicita manifestação da Assessoria Jurídica a despeito da publicação da Instrução Normativa n. 12, de 16 de dezembro de 2022, assinada de forma conjunta pelos presidentes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que estabelece as diretrizes e os procedimentos para elaboração, análise, aprovação e monitoramento de plano de manejo florestal sustentável (pmfs) comunitário para a exploração de recursos madeireiros em terras indígenas.

2. Feita uma análise preliminar, denota-se que o ato normativo foi publicado e entrará em vigor a partir do dia 14 de janeiro de 2023, trinta dias após a sua publicação.

3. O presente ato busca regulamentar a exploração de recursos madeireiros no interior de terras indígenas, por meio de organizações indígenas bem como por organizações mistas, ou seja, organizações com composição de não indígenas, conforme disposto no art. 2°, inciso II, in verbis:

Art. 2º Para os fins de aplicação desta Instrução Normativa, são adotados os seguintes conceitos:

I – organização indígena: forma de associação ou cooperativa composta exclusivamente por integrantes indígenas;

II – organização de composição mista: forma de associação ou cooperativa onde é admitida a participação de não indígenas, desde que essa participação seja inferior a cinquenta por cento (50 %).

4. Tal norma, configura uma resposta do governo atual à demanda dos madeireiros, visando o incentivo à extração de madeira nas terras indígenas, atividade que por sua própria natureza, não pode ser realizada de forma sustentável.

5. Do ponto de vista formal, o decreto afronta o princípio da consulta e consentimento prévio, livre e informado dos povos indígenas, consagrado no art. 6º, da Convenção 169 da OIT, norma de caráter supralegal no ordenamento jurídico brasileiro, já consubstanciado em recentes decisões do Egrégio Supremo Tribunal Federal (STF), vide decisium, ADPF 709. O Estado tem o dever de consultar previamente os povos indígenas, todas as vezes que atos de caráter administrativo e legislativos, foram capazes de lhes afetar. In casu, o ato normativo em comento, traz previsões legais que afetam diretamente a vida dos povos indígenas e a defesa de seus territórios.

6. E, tratando-se de exploração dentro de terras indígenas, fica estabelecida a necessidade de consulta aos povos que residem nos territórios afetados, a fim de se determinar se seus interesses serão prejudicados. Tais ações são anteriores a qualquer tipo de empreendimento ou autorização legal de pesquisa e lavra dos recursos existentes nas suas terras.

7. A respeito do princípio da consulta e consentimento prévio e livre, é importante salientar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos se pronunciou sobre o dever dos Estados de consultar, determinando que para garantir a participação efetiva dos povos indígenas, o mesmo tem o dever de consultar ativamente a comunidade, de acordo com seus costumes e tradições1 . Vejamos:

“ […] aceite e divulgue informações, o que implica uma comunicação constante entre as partes. As consultas devem realizar-se de boa-fé, através de procedimentos culturalmente apropriados e devem objetivar um acordo. Também se deve consultar o povo, de acordo com suas próprias tradições, nos estágios iniciais do plano de desenvolvimento ou investimento e não apenas quando surge a necessidade de obter a aprovação da comunidade, se for o caso. O alerta precoce proporciona tempo para discussão interna nas comunidades e resposta adequada ao Estado. O Estado deve também garantir que os membros do povo Saramaka tenham conhecimento dos possíveis riscos, incluindo os riscos ambientais e de saúde, a fim de que aceitem o plano proposto de desenvolvimento ou investimento de forma consciente e voluntária. Finalmente, a consulta deve levar em conta os métodos tradicionais do povo Saramaka para a tomada de decisões”.

8. Do ponto de vista material, a instrução normativa viola preceitos constitucionais: O usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre as riquezas de seus territórios. No que tange aos direitos sobre o território a Constituição Federal de 1988 no Título VIII, da Ordem Social, no Capítulo VIII, estabelece:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5o É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º. (g.n).

9. A carta magna, reconheceu o direito originário dos povos indígenas sobre a terra, e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes. A não observância dessa garantia constitucional, tem promovido uma série de impactos nocivos aos povos indígenas. A Funai, em conjunto com o Ibama, ao expedir a normativa em tela, retroalimenta a violência aos povos indígenas, inclusive os indígenas isolados e de recente contato, colocando-os em situação de risco de vida. Indígenas do povo Guajajara da terra indígena Araribóia, têm denunciado a situação de insegurança na terra indígena, pois a invasão madeireira tem repercutido na estabilidade dos direitos fundamentais dos povos indígenas daquela região. A Instrução Normativa nº 12/2022, está eivada de inconstitucionalidade, para além da lesar o usufruto exclusivo dos povos indígenas, as instituições governamentais que assinam o expediente descaracterizam a autodeterminação dos povos indígenas, pois abre-se um precedente deletério a autonomia dos indígenas e suas organizações em gerir seus territórios. A abertura da exploração econômica em terras indígenas deve ser feita sob o manto da ampla participação via consulta prévia, pois quando não feita, incorre em ilegitimidade do expediente, considerando que a exploração econômica de não indígenas em territórios tradicionais, pode interferir na dinâmica cultural desses povos. Desta forma, o art. 215 da Constituição Federal de 1988, confere ao Estado brasileiro o dever de garantir o pleno exercício dos direitos culturais dos povos indígenas brasileiros, nesse sentido, a exploração de madeira nos territórios indígenas feita por não indígenas, tende a agravar uma situação que tem contribuído para o avanço do desmatamento no interior de terras indígenas, e assassinatos de lideranças que dedicam suas vidas na proteção dos seus territórios. Assim sendo, os impactos da Instrução Normativa, tende a exortar conflitos em territórios indígenas, implicando desta forma nas dinâmicas do cotidiano tradicional.

10. Cabe consignar que os recursos naturais para os povos indígenas, são necessariamente uma condição, se ne quan non, para a garantia a expressão cultura e de vida, portanto, o meio ambiente, é essencial para assegurar o direito fundamental à vida (art. 5º, caput CF 88). Salvaguardar os direitos territoriais dos povos indígenas, impedindo a expropriação do meio ambiente é promover o princípio da ubiquidade, que para Celso Antônio Pacheco Fiorilo:

“este princípio vem evidenciar que o objeto de proteção do meio ambiente, localizado no epicentro dos direitos humanos, deve ser levado em consideração toda vez que uma política, atuação, legislação sobre qualquer tema, atividade, obra etc. tiver que ser criada e desenvolvida. Isso porque, na medida em que possui como ponto cardeal de tutela constitucional a ‘vida’ e a ‘qualidade de vida’, tudo que se pretende fazer, criar ou desenvolver deve antes passar por uma consulta ambiental, enfim, para saber se há ou não a possibilidade de que o meio ambiente seja degradado” (in “Curso de Direito Ambiental Brasileiro”, Ed. Saraiva, 7ª ed., p. 45).

11. Ademais, em que pese a tentativa demasiadamente equivocada de se colocar e enquadrar as organizações indígenas dentro de um parâmetro eurocêntrico, é de grande valia invocar que a Constituição Federal estabeleceu nos seus artigos 231 e 232 a liberdade aos povos indígenas de se organizarem. Assim aduz o advogado indígena Eloy Terena, em recente livro publicado:

“No direito brasileiro temos, nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, o reconhecimento das formas de organizações tradicionais indígenas. Como visto, a Constituição inovou ao reconhecer o Estado pluriétnico, reconhecendo os indígenas, comunidades e povos enquanto sujeito de direitos. O caput do art. 231 é categórico ao reconhecer as organizações sociais dos povos indígenas […] a organização social indígena é a estrutura política de determinado povo e/ou comunidade que tem na identidade cultural sua fonte normativa para regular as relações intra e extracomunitária.”

12. Sabe-se que as atividades regulamentadas pela instrução normativa impactam diretamente o meio ambiente, trazendo profundas mudanças aos povos indígenas e culturais, portanto, a doutrina estrangeira como a nacional reconhece a existência do princípio da proibição do retrocesso ambiental. Neste sentido Canotilho lesiona:

“No âmbito interno, o princípio da proibição do retrocesso ecológico, espécie de cláusula rebus sic stantibus, significa que, a menos que as circunstâncias de fato se alterem significativamente, não é de admitir o recuo para níveis de proteção inferiores aos anteriormente consagrados. Nesta vertente, o princípio põe limites à adoção de legislação de revisão ou revogatória. As circunstâncias de fato às quais nos referimos são, por exemplo, o afastamento do perigo de extinção antropogênica, isto é, a efetiva recuperação ecológica do bem cuja proteção era regulada pela lei vigente, desde que cientificamente comprovada; ou a confirmação científica de que a lei vigente não era a forma mais adequada de proteção do bem natural carecido de proteção. Internamente, o princípio do retrocesso ecológico significa, por outro lado, que a suspensão da legislação em vigor só é de admitir se se verificar uma situação de calamidade pública, um estado de sítio ou um estado de emergência grave. Neste caso, o retrocesso ecológico será necessariamente transitório, correspondendo ao período em que se verifica o estado de exceção.”

13. Ademais, cabe ressaltar que o ato normativo centraliza suas atividades econômicas na exploração de recursos naturais, sob argumento de regulamentação sob o crivo da sustentabilidade de tal atividade. Dados do Relatório violência contra os povos indígenas do Brasil: Dados 2021, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI)4 revelam que as invasões em terras indígenas, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio, triplicaram desde o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, passando de 108 casos em 2018, para 305 no ano de 2021, atingindo 226 terras indígenas em 20 estados do país.

14. No contexto geral, os ataques aos territórios indígenas, está diretamente ligado a medidas do poder Executivo, que ao fim do mandato, edita normas que favorece e incentiva a exploração e a apropriação privada de terras indígenas por parte de não indígenas, dando a invasores confiança para avançarem em suas ações ilegais dentro dos territórios.

15. Nesse cenário, órgãos estatais como a Funai, que tem como missão institucional a proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas, tornou-se uma agência reguladora de negócios criminosos, tendo como prova disto a operação deflagrada pela Polícia Federal5 no dia 15 de dezembro de 2022, que visa combater o desmatamento e grilagem de terras indígenas, onde cumpriu com 16 mandados de busca e apreensão em 4 estados e na sede da Funai em Brasília, tendo como principal alvo das investigações a diretoria de proteção territorial (DPT) e servidores do alto escalão do órgão indigenista, que atuavam para dificultar a proteção dos territórios.

16. O governo Bolsonaro naturalizou as violências praticadas por invasores para a extração de recursos naturais e o loteamento das terras da União – afinal, as terras indígenas são bens da União, conforme estabelece a Constituição Federal. Tais práticas se intensificaram pois os órgãos de fiscalização e proteção mudaram seus objetivos, tornando-se intermediadores de crimes em terras indígenas.

17. Nesta senda, fere princípios sensíveis que resguardam os direitos e interesses dos povos indígenas, razão pela qual, cabe a APIB, manifestar sua preocupação e repúdio, bem como acionar as instâncias legais competentes com o fito de reprimir tais violações a direito das comunidades indígenas.

16 de dezembro de 2022