APIB solicita ingresso em ação que questiona impactos ambientais da atividade econômica

APIB solicita ingresso em ação que questiona impactos ambientais da atividade econômica

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), solicitou ingresso na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 6.528, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro no STF. A ação questiona dispositivos da Lei 13.874/2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, à despeito dos impactos ambientais que a atividade possa causar.

De acordo com o documento, entregue ao ministro Ricardo Lewandowski, “a presente ADI versa sobre a aplicação e os impactos da LLE sobre os direitos fundamentais de natureza socioambiental, especialmente o direito de toda a coletividade, em suas presentes e futuras gerações, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e os direitos à saúde humana, à vida e à dignidade da pessoa humana, assim como os direitos dos povos indígenas, comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais.”

A ADI questiona a constitucionalidade do inciso IX do artigo 3º da citada Lei 13.874/2019 que estabelece que, transcorrido o prazo máximo definido e apresentados os elementos necessários, será concedida aprovação tácita do pedido de liberação da atividade econômica, mesmo no caso de haver impacto socioambiental.

Segundo os autores da ação, a aprovação tácita, em matéria de direito ambiental, viola os princípios do desenvolvimento sustentável, da preservação do meio ambiente e da proibição do retrocesso em direitos fundamentais socioambientais.

Para o coordenador jurídico da Apib, o advogado indígena Eloy Terena “a aprovação tácita de atos de órgãos como a Funai viola a proteção conferida aos povos e terras indígenas, pois admite que o Estado emita atos administrativos que afetem essas comunidades sem a consulta prévia, livre e informada dos povos e comunidades afetadas”.

O Instituto Socioambiental, o Observatório do Clima e a fundação SOS Mata Atlântica assinam a ADI em conjunto com a Apib.

Acesse a Petição amicus – ADI 6528

Apib vai ao Tribunal Permanente dos Povos para denunciar crimes do governo Jair Bolsonaro

Apib vai ao Tribunal Permanente dos Povos para denunciar crimes do governo Jair Bolsonaro

A Apib denunciou os crimes de Jair Bolsonaro no Tribunal Permanente dos Povos (TPP), nesta quarta-feira, 25, junto com a Coalizão Negra por Direitos, a Internacional de Serviços Públicos e a Comissão Arns.

Na sessão, a conduta de Jair B. no uso de suas atribuições ao longo da Covid-19 e o custo humano de suas políticas antidemocráticas foi avaliada. Destacou-se a violação e os crimes contra a humanidade cometidos pelo  governo que atingiram especialmente as populações negras, povos indígenas e trabalhadores da área de saúde.

O advogado da Apib, Maurício Terena, fez a sustentação levantando as irregularidades cometidas durante o período de isolamento social. “A pandemia nos aproximou da morte, expôs os problemas estruturais da questão indígena em nosso país que colocamos embaixo do tapete desde a invasão colonial. Rememoramos uma história recente de extermínio dos povos indígenas por meio de doenças trazidas pelos colonizadores. E, ficou cristalino que em nada aprendemos com essas trágicas experiências. A SESAI negou atendimento para indígenas que estavam em terras não demarcadas; se negou a vacinar indígenas em contexto urbano. O Presidente da SESAI, o militar da reserva Robson de Souza Santos, no dia 18 de agosto de 2020 proibiu a entrada de ajuda humanitária dos médicos sem fronteiras próximo ao meu território na terra indígena Taunay IPEGUE no município de Aquidauana. Nesse dia para nós terenas ficou claro que o governo queria ver nosso povo morrer”, afirmou durante o tribunal.

O júri foi presidido pelo ex-juiz italiano Luigi Ferrajoli, professor catedrático da Universidade de Roma e contou com a participação de doze membros de nacionalidades distintas, composto por especialistas reconhecidos na área do direito, das ciências sociais e em saúde global, como Alejandro Macchia, médico cardiologista argentino; Boaventura de Sousa Santos, professor emérito de Sociologia da Universidade de Coimbra; Clare Roberts, advogado, ex-ministro da Justiça, ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e ex-juiz da Suprema Corte do Caribe Leste; Eugenio Raúl Zaffaroni, Professor Emérito da Universidade de Buenos Aires; Jean Ziegler, professor de Sociologia da Universidade de Genebra; Joziléia Kaingang, geógrafa e antropóloga brasileira da etnia Kaingang, entre outros. O governo não enviou representação para sua defesa. 

O TPP é mais um espaço de denúncia internacional que ajuda a pressionar para que Jair seja condenado efetivamente pelos crimes que têm cometido ao longo de todo seu governo. Este tribunal dedicado aos direitos dos povos tem sede em Roma, na Itália. Foi criado em 1979 e é herdeiro do Tribunal Russell, constituído em 1966 para investigar crimes e atrocidades na guerra do Vietnã. 

O TPP tem sido uma das expressões mais ativas de mobilização e articulação em defesa da Declaração Universal dos Direitos dos Povos, contando com participação de entidades e movimentos sociais contra violações praticadas por autoridades públicas e agentes privados, tendo como principal objetivo gerar verdade, memória e reparação moral.

Aty Guasu realiza retomada e exige justiça para Alex Guarani Kaiowá

Aty Guasu realiza retomada e exige justiça para Alex Guarani Kaiowá

A Grande Assembleia Guarani Kaiowá – Aty Guasu – retomou uma fazenda, denominada pelos indígenas de Tekoha Jopara, e em carta pública, lamentou o assassinato de Alex Recarte Vasques Lopes, de 18 anos. O povo Guarani Kaiowá atribui o crime ao vasto histórico de violência e impunidade de fazendeiros contra os indígenas no Mato Grosso do Sul (MS). 

Alex foi baleado no último sábado, 21, quando saiu do Território Indígena (TI) Taquapery, onde morava, junto com dois outros jovens Guarani Kaiowá, para buscar lenha na vizinhança. Seu corpo foi encontrado com cinco perfurações de arma de fogo, do lado paraguaio da fronteira, a menos de dez quilômetros dos limites do território.

“Mataram um rapaz de 18 anos, é triste. A família decidiu fazer a retomada onde mataram o rapaz. Precisamos de apoio dos órgãos competentes. Aqui na aldeia Taquaperi, nunca acontecem retomadas, é a primeira vez que acontece isso. Já perdemos muitos parentes na estrada, atropelados. Dessa vez, tomamos a decisão [de retomar]. Chega de perder nossos parentes, é dor para nós”, relatou uma das lideranças do TI.

Ele é a quarta pessoa da família a ser assassinada no município de Coronel Sapucaia, desde 2007. Na carta, a Aty Guasu deixa clara a conivência dos órgãos de justiça locais com a violência causada por latifundiários. “No MS, para um Kaiowá viver é lutar – para ter um futuro em meio à violência e genocídio que nos cerca”, afirmam.

O território Guarani e Kaiowá está cercado por fazendas, inviabilizando o acesso e as condições mínimas de subsistência, o que converte o simples ato de circular na região – e até em áreas já reconhecidas como parte do Território Indígena – em algo arriscado e fatal.

“Por isso, nós da Aty Guasu Kaiowa e Guarani – Movimento indígena que representa a totalidade dos territórios de nosso povo, para fazer valer a vida do menino Alex e de todos os outros, exigimos e suplicamos, que tenham os operadores de justiça sensibilidade e humanidade e permitam que sejamos julgados pela Esfera Federal. Que nos seja permitido o direito sobretudo de uma Perícia Federal – longe da influência do Agro-Estado”, reinvidica a carta. 

Para os fazendeiros, as instituições agiram rapidamente. No mesmo dia da retomada, o acesso à área foi impedido por um bloqueio de viaturas do Departamento de Operações de Fronteira (DOF). A barreira foi posicionada na rodovia MS-286, que atravessa a TI Taquaperi e dá acesso a outras comunidades indígenas da região, deixando-as ainda mais isoladas.

 Leia a carta

A CIDH solicita a Corte IDH medidas provisórias em favor dos Povos Indígenas

A CIDH solicita a Corte IDH medidas provisórias em favor dos Povos Indígenas

Foto: Sheyden (@sheydedengo)

A Comissão Interamericana da Direitos Humanos (CIDH) solicitou à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) outorgar medidas provisórias para proteger os direitos à vida, à integridade pessoal y à saúde dos membros dos Povos Indígenas Yanomami, Ye`Kwana e Munduruku, que se encontram em uma situação de extrema gravidade e urgência de danos irreparáveis aos seus direitos no Brasil pela presença de terceiros não autorizados que exploram ilegalmente recursos naturais nos seus territórios.

Os Povos Yanomami y Ye`kwana estão compostos de cerca de 26 mil pessoas que habitam a Terra Indígena Yanomami, enquanto o Povo Munduruku é formado por cerca de 14 mil pessoas distribuídas em sete terras: Munduruku, Sai Cinza, Kayabi, Reservas Praia do Índio e Praia do Mangue, Sawre Muybu y Sawre Bapin. Em 2020, a Comissão Interamericana lhes outorgou medidas cautelares, em conformidade com o artigo 25 do Regulamento da CIDH, ante o grave e urgente risco que enfrentavam no contexto da pandemia de COVID-19.

Durante a vigência das medidas cautelares, a Comissão recebeu informação que indica o aumento exponencial da presença de terceiros não autorizados nas referidas terras indígenas, principalmente realizando garimpo e exploração de madeira. Nesse contexto, a CIDH observou que as e os indígenas Yanomami, Ye`kwana e Munduruku estão expostas a ameaças e ataques violentos, incluindo a violação sexual, afetações à saúde pela disseminação de doenças, como a malária e a COVID-19, em um contexto de debilidade da atenção médica, e alegada contaminação por mercúrio, derivada do garimpo na região.

A informação apresentada indica que os atos de violência, assassinatos e ameaça continuam nas comunidades indígenas, inclusive se agravando. Nesse cenário, a CIDH observou que existe 1. um alto nível de violência reportado; 2. frequente uso de armas de fogo e ataques armados; 3. eventos de possível represália; 4. ameaças de morte aos povos indígenas; 5. a concretização de danos irreparáveis, com lesão e morte de indígenas; e 6. afetações à vida e à integridade de crianças indígenas, assim como de mulheres e meninas que tem sido vítimas de violência sexual.

O Estado brasileiro enviou informações à CIDH sobre medidas de proteção adotadas como: a elaboração de projetos e planos de ação; envio de insumos médicos; realização de operações de retirada de terceiros e do garimpo das terras indígenas; entre outras. A Comissão valora as medidas implementadas pelo Estado, mas ao mesmo tempo observa que, diante do agravamento dos eventos de risco reportados, estas seriam insuficientes. Ao largo de quase dois anos de vigência das medidas cautelares, não se conta com informação sobre como as ações empreendidas pelo Estado protejam efetivamente aos povos indígenas propostos beneficiários.

Além disso, a Comissão levou em consideração que há decisões judiciais domésticas, inclusive do Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte brasileira, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADP 709), determinando a proteção dos povos indígenas, e constata a situação de risco em torno da presença de terceiros não autorizados nos territórios.

Apesar das medidas de seguimento adotadas pela CIDH visando à efetiva implementação de medidas de proteção aos Povos Indígenas Yanomami, Ye`kwana e Munduruku, como solicitação de informação às partes, realização de uma reunião de trabalho e uma audiência pública no 178 e 180 Período de Sessões respectivamente, a situação de risco observada vem se agravando e desencadeando sérios eventos de violência, os quais tem de mantido com o tempo.

Nessas circunstâncias, a Comissão considera que os direitos dos membros dos Povos Indígenas Yanomami, Ye`kwana e Munduruku se encontram em uma situação de risco extremo e urgente de dano irreparável. Assim, com fundamento nos eventos expostos e em conformidade ao disposto no artigo 63.2 da Convenção Americana e o artigo 27 do Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão solicita à Corte IDH outorgar medidas provisórias e que ordene ao Estado do Brasil proteger as e os propostos beneficiários.

Em particular, a Comissão solicita à Corte que requeira ao Ilustre Estado do Brasil que:

  1. adote as medidas necessárias para proteger os direitos à vida, integridade pessoal e saúde dos membros dos Povos Indígenas Yanomami, Ye`kwana e Munduruku, identificados na presente solicitação, desde uma perspectiva culturalmente adequada, com enfoque de gênero e etária, implementando medidas efetivas diante de ameaças, intimidações e atos de violência, as quais incluam aquelas medidas necessárias frente a continuidade de atividades ilegais e de contaminação nos territórios, segundo avaliado pelas autoridades internas competentes;
  2. adote medidas culturalmente adequadas de prevenção à disseminação de doenças e mitigação de contágio e contaminação, proporcionando-lhes uma atenção médica adequada em condições de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, conforme os padrões internacionais aplicáveis;
  3. Acorde as medidas a serem adotadas com as pessoas beneficiárias e seus representantes;
  4. informe sobre as ações implementadas para investigar os fatos que deram origem à solicitação das presentes medidas provisórias e assim evitar sua repetição. autoridades internas diretamente responsáveis pela implementação das presentes medidas provisórias, como parte das medidas de acompanhamento apropriadas para a efetiva implementação das presentes medidas provisórias. A CIDH coloca-se à disposição para participar da visita no âmbito de suas competências perante a Corte Interamericana;

Além disso, a Comissão Interamericana solicita à Corte que realize uma visita in situ a fim de verificar a situação destes Povos Indígenas.

A Corte IDH emite medidas provisórias em casos de extrema gravidade e urgência para evitar danos irreparáveis às pessoas; tais são de caráter obrigatório para os Estados de modo que as decisões contidas nas mesmas exigem que se adotem ações específicas para resguardar direitos e/ou proteger à vida das pessoas ou coletivos que estão sob ameaça.

A CIDH é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo mandato surge a partir da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Comissão Interamericana tem como mandato promover a observância e defesa dos direitos humanos na região e atua como órgão consultivo da OEA na temática. A CIDH é composta por sete membros independentes, que são eleitos pela Assembleia Geral da OEA a título pessoal, sem representarem seus países de origem ou de residência.

Campanha Indígena: Apib entrega carta para Fachin junto com Coalizão para defesa do sistema eleitoral

Campanha Indígena: Apib entrega carta para Fachin junto com Coalizão para defesa do sistema eleitoral

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, recebeu uma carta da “Coalização para a Defesa do Sistema Eleitoral”, nesta segunda-feira, 16, em que os movimentos populares denunciam as reiteradas críticas do presidente genocida ao sistema eleitoral brasileiro. Para o coletivo, o objetivo de Bolsonaro é “gerar instabilidade institucional, disseminando a desconfiança da população brasileira e do mundo acerca da correção e regularidade das eleições brasileiras”. E se trata de “críticas infundadas, dúvidas e afirmações desprovidas de respaldo técnico e racional”.

Desde a eleição de Dilma Rousseff em 2014, a direita tem feito ataques ao sistema eleitoral brasileiro e Bolsonaro intensificou esta prática falando em “fraudes eleitorais” durante todo seu mandato. Ameaçado pela incontestável preferência popular à Lula, apontada nas pesquisas mais recentes, ele chegou a propor um gabinete militar de “fiscalização” da votação. No entanto, no ano passado, admitiu não ter nenhuma prova que sugira a veracidade das acusações.

A Coalização para a Defesa do Sistema Eleitoral é composta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e diversas organizações da sociedade civil e movimentos populares como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Coalizão Negra por Direitos e a ColetivA Mulheres Defensoras Públicas do Brasil, entre outas.

Acesse carta completa aqui

Na pauta do Supremo, as Terras Indígenas: precisamos nos mobilizar para a defesa da vida dos povos indígenas

Na pauta do Supremo, as Terras Indígenas: precisamos nos mobilizar para a defesa da vida dos povos indígenas

Foto: Matheus Alves @imatheusalves
Artigo de Luiz Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib

No dia 23 de junho, estará na pauta novamente do STF, o julgamento do futuro das terras indígenas do Brasil. O presidente da Corte incluiu na pauta de julgamento o recurso extraordinário n. 1.017.365, conhecido como caso Xokleng, e que tem repercussão geral reconhecida. Significa que o entendimento que o Supremo adotar neste caso servirá de parâmetro para todas as terras indígenas do país.

No centro do debate, duas teses estão em disputa. De um lado, a tese do indigenato ou do direito originário dos povos indígenas. E, de outro lado, a tese do marco temporal, defendida pelos ruralistas e pelo presidente Bolsonaro. Este julgamento teve início no mês de agosto de 2021, na oportunidade em que os advogados indígenas (Eloy Terena, Samara Pataxó, Cristiane Baré e Ivo Macuxi) e indigenistas apresentaram sustentação oral. Na mesma ocasião, outras organizações que atuam na defesa dos direitos indígenas reforçaram os argumentos em defesa da comunidade indígenas. O procurador geral da república apresentou parecer defendendo o direito indígena e pugnando pela manutenção e respeito da posse indígena.

No dia 09 de setembro de 2021, o ministro relator Luiz Edson Fachin proferiu voto e apresentou proposta de fixação de tese para reconhecer os direitos territoriais dos povos indígenas como direitos fundamentais e originários. Logo em seguida, o ministro Kassio Nunes Marques apresentou voto divergente do ministro Fachin, reconhecendo o marco temporal. E, no dia 15 de setembro de 2021, quando chegou a vez do ministro Alexandre de Moraes votar, este fez pedido de vista. O pedido de vista é uma faculdade que todo ministro tem e consiste num pedido de mais tempo para analisar o caso. E, no dia 11 de outubro, o ministro Alexandre de Moraes devolveu o processo para prosseguimento do julgamento, razão pela qual, o ministro presidente Luiz Fux, incluiu o processo na pauta de julgamento do dia 23 de junho de 2022.

O Caso Xokleng e seus contornos políticos e jurídicos

O futuro das terras indígenas está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento do recurso extraordinário n. 1.017.365, com repercussão geral reconhecida, também conhecido como “caso Xokleng”, servirá de parâmetro para a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil.

Os povos indígenas vivenciam um contexto político muito adverso na gestão do governo Bolsonaro, primeiro presidente eleito declaradamente contrário aos povos indígenas. Desde que tomou posse, assinou diversos atos que contrariam a Constituição e Tratados Internacionais que protegem os povos indígenas e seus territórios. Aliás, não é novidade que os direitos dos povos indígenas estejam em constantes disputas no campo político e judicial. Desde o período colonial, vários expedientes normativos foram emitidos tendo por objeto a posse desses territórios. Na atualidade são muitos os argumentos utilizados para impedir o reconhecimento formal de uma terra indígena. Entretanto, sem dúvida, o mais utilizado é a tese do “marco temporal”.

No início do mês maio de 2020, atendendo a um pedido incidental feito pela Comunidade Indígena Xokleng e outras organizações indígenas e indigenistas, o ministro relator do caso Luiz Edson Fachin, por meio de decisão fundamentada, suspendeu todas as ações judiciais de reintegração de posse ou anulação de processos de demarcação de terras indígenas enquanto durar a pandemia de Covid-19 ou até o julgamento final do Recurso Extraordinário n. 1.017.365, com repercussão geral reconhecida (Tema n. 1.031). Neste mesmo processo, o ministro relator também suspendeu os efeitos do Parecer n. 001 da Advocacia-Geral da União (AGU) e determinou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) “se abstenha de rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, com base no Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU”.

O citado Parecer n. 001 da AGU vinha causando imensos prejuízos aos povos indígenas. Além de vincular todas as demarcações de terras ao que foi decidido no caso Raposa Serra do Sol, também pretendia fixar a data de 5 de outubro de 1988 como marco temporal para a demarcação das terras indígenas. Ou seja, as comunidades indígenas que não estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988, segundo essa tese, perderiam seus direitos territoriais.

E ainda, este parecer da AGU também estava sendo usado para rever processos de demarcação, fazendo com que a Procuradoria Especializada da Funai desistisse de vários processos judiciais, abrindo mão da defesa de comunidades indígenas e do próprio interesse da União– tendo em vista que Terra Indígena é bem público federal (Art. 20, inciso XI). Como consequência, comunidades indígenas estavam perdendo os processos e ficando sem defesa, o que fere o direito fundamental ao devido processo legal.

A suspensão do Parecer n. 001 da AGU e o mérito desse processo serão analisados pelo Pleno do STF no julgamento do dia 23 de junho. Esse julgamento é muito importante para todos os povos indígenas do Brasil. Após séculos de violências, remoções forçadas e extermínio de povos inteiros, a Suprema Corte terá a oportunidade de fazer valer o artigo 231 da Constituição, que determina que as terras indígenas, utilizadas para as atividades produtivas e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos povos indígenas, bem como aquelas que são necessárias para a reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, devem ser demarcadas e protegidas. Esse é um direito fundamental, inalienável, indisponível e imprescritível. Foi essa a escritura pública que o Estado brasileiro assinou para os povos indígenas do Brasil.

O caso em questão, do povo Xokleng, é o mais emblemático no momento, tendo em vista que teve repercussão geral reconhecida. Trata-se do Recurso Extraordinário n. 1.017.365, interposto pela Funai, onde se busca manter reconhecido o território tradicional do povo Xokleng, em Santa Catarina. O processo se originou em uma ação de reintegração de posse requerida pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (FATMA), no ano de 2009. Na petição, a FATMA pretendia reaver área administrativamente declarada pelo Ministro de Estado da Justiça como de tradicional ocupação dos indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani. Tanto em primeira instância, quanto na segunda, as decisões foram contrárias aos interesses dos indígenas, razão pela qual, o processo chegou ao Supremo por via do extraordinário. O recurso foi distribuído ao ministro Edson Fachin e teve reconhecida a repercussão geral. O processo é tido pelo movimento indígena como emblemático, tanto que muitas organizações requereram ingresso no feito na qualidade de amicus curiae. São elas: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Conselho do Povo Terena, Aty Guasu Guarani Kaiowá, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Conselho Indigenista Missionário, dentre outros.

O voto do ministro Luiz Edson Fachin

É preciso que as lideranças indígenas estejam cientes dos termos gerais do voto do ministro relator Luiz Edson Fachin, que reafirma que “os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Com base nesse pressuposto, vaticinou que a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. E consignou que a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal.

Outro aspecto, é a reafirmação da compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente. Neste sentido, vale ressaltar a incompatibilidade das atividades de garimpo e mineração nas terras indígenas. Isto porque, a terra indígena é categoria jurídica-antropológica projetada para proteger o modo de vida dos povos indígenas e garantir a sobrevivência física e cultural dos povos.

Em defesa do indigenato

A teoria do indigenato foi desenvolvida por João Mendes Júnior, e apresentada de forma inaugural em conferência proferida na antiga Sociedade de Ethnografia e Civilização dos Índios, em 1902, quando o professor João Mendes Júnior afirmou: “[…] já os philosophos gregos afirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Com quanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1o de abril de 1680, ‘a primária, naturalmente e virtualmente reservada’, ou, na phrase de Aristóteles (Polit., I, n. 8), – ‘um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento’. Por conseguinte, não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem”.

O Alvará de 1º de abril de 1680, referido no texto, ao cuidar das sesmarias, ressalvou as terras dos indígenas, considerados “primários e naturais senhores delas”[2]. Portanto, tem-se nesta norma o reconhecimento expresso do instituto do indigenato, como sendo um direito originário, anterior ao próprio estado, anterior a qualquer outro direito. Nas palavras do professor José Afonso da Silva (2006, p. 858), “o indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”.

Neste sentido, a Constituição de 1988 adotou a teoria do indigenato ao reconhecer o direito originário dos povos indígenas as terras tradicionalmente ocupadas. Em julgamento ocorrido em 16 de agosto de 2017, o pleno do Supremo analisou as ACO’s 362 e 366, ambas de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello. Nos votos é possível extrair pontos importantes lançados pelos ministros, que deixam claro que o instituto do indigenato possui assento Constitucional. O Tribunal foi unânime ao reafirmar o direito territorial dos povos indígenas. O voto do ministro Luís Roberto Barroso deixa claro que a ocupação indígena não se perde ao tempo que foram esbulhados, violentados e expulsos, independente do lapso temporal:

[…] ainda que algumas comunidades indígenas nelas não estejam circunstancialmente por terem sido retiradas à força, não deixaram as suas áreas, portanto, voluntariamente e não retornaram a elas porque estavam impedidas de fazê-lo. Por isso entendo que somente será descaracterizada a ocupação tradicional indígena caso demonstrado que os índios deixaram voluntariamente o território que postulam ou desde que se verifique que os laços culturais que os uniam a tal área se desfizeram.

[…] penso que a maneira como a Constituição de 1988 enfrentou este problema resolveu retroativamente. Portanto, ainda que houvesse uma pretensão fundada, ela não subsistiria ao caráter declaratório e retroativo com que a Constituição tratou esta matéria.

O ministro Alexandre de Morais, na mesma linha, reforçou o indigenato e vaticinou que a posse indígena não se perde quando retirados à força ou sem sua vontade de suas ricas terras, in verbis:

“No mesmo sentido foi bem lembrado aqui, da tribuna, pela Ministra Grace, que essas áreas de ocupação já originária dos índios, chamadas à época, pelo mestre João Mendes Júnior, de terras do indigenato, desde o alvará de 1º de abril de 1680 e, depois, a Lei de 1850 e o Decreto de 1854, já eram áreas destinadas aos indígenas.

“(…) as terras do indigenato, sendo terras congenitamente possuídas, não são devolutas, isto é, são originariamente reservadas, na forma do Alvará de 1º de abril de 1680 e por dedução da própria Lei de 1850 e do art. 24, §1º, do Decreto nº1854 (…)” (Os indígenas do Brasil, seus direitos individuais e políticos, 1012, p. 62)

Também pesou a agressão que os índios sofreram, em determinado momento, daqueles que invadiram as suas terras. Isso forçou o deslocamento, só que não foram deslocamentos voluntários, foram deslocamentos compulsórios, em virtude da violência sofrida à época. Isso não retira a característica de permanência na ocupação”.

Por sua vez, a ministra Carmen Lúcia enfatizou que indigenato é a segurança constitucional dos direitos dos povos indígenas, sendo que sua aplicabilidade consubstancia garantias étnicas, culturais e sociais aos povos indígenas do Brasil, vejamos:

“No voto que proferi no ‘caso Raposa-Serra do Sol’ (Pet n. 3.388, Relator o Ministro Carlos Britto, DJe 24.9.2009), observei que, embora as Constituições brasileiras somente tenham cuidado, especificamente, do tema referente aos direitos dos indígenas desde 1934, a matéria foi objeto de legislação antes mesmo da formação do Estado brasileiro, como demonstra a lição de João Mendes Júnior em seu trabalho “Os indígenas do Brazil, seus direitos individuais e políticos” (São Paulo: Typ. Hennies, Irmãos, 1912), que faz remissão ao Alvará de 1º de Abril de 1680, a origem do indigenato, a distinguir a posse dos indígenas sobre suas terras da posse de ocupação.

Como demonstrado pelo Ministro Ilmar Galvão naquela Ação Cível Originária n. 469, as terras de ocupação permanente dos indígenas não eram terras devolutas e não passaram a integrar o patrimônio dos Estados com a Constituição de 1891, passando a posse dos silvícolas a ser protegida constitucionalmente desde 1934.

Na Constituição da República de 1988 se fortaleceu, expressamente, a tutela do indigenato, definidas entre os bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (art6. 20, inc. XI), aos quais se reconheceu como imprescritíveis os direitos delas decorrentes, garantindo-lhes a posse e exclusivo usufruto, nos termos do seu art. 231”.

O ministro Edson Fachin também reforçou sobre a nulidade de títulos e a existência dos direitos dos índios antes mesmo da existência de qualquer outro direito asseverando que a “Constituição Federal de 1934 foi a primeira a consagrar o direito dos índios à posse de suas terras, disposição repetida em todos os textos constitucionais posteriores, sendo entendimento pacífico na doutrina que esse reconhecimento constitucional operou a nulidade de pleno direito de qualquer ato de transmissão da posse ou da propriedade dessas áreas a terceiros”. A partir daí o ministro chama atenção para as remoções forçadas de várias comunidades indígenas. “Ocorre que, no período anterior à Constituição de 1988, os índios – chamados silvícolas – ainda eram tratados como tutelados pelos órgãos de proteção federal e era bastante comum a prática de deslocamento de povos inteiros”.

A ministra Rosa Weber consubstanciou sua posição na premissa constitucional da posse e ocupação indígena. Afirmando que a forma de ocupação dos indígenas é de acordo com suas próprias instituições, usos e costumes, o que pode fazer com que, de acordo com sua lógica relacional, não necessariamente estarem na posse física em determinado tempo, mas sim, de qualquer forma, manterem a posse tradicional. O ministro Ricardo Lewandowski, além de erigir validade hierárquica ao laudo antropológico, reafirmou que o direito dos povos indígenas é assegurado, inclusive, pela legislação internacional, como é o caso da Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho.

“Não raro, diria, até muito comum, serem os laudos antropológicos desqualificados, imputando-lhes a característica de que são mera literatura. […] e afirmar que a Antropologia é, sim, uma ciência. É uma Ciência porque tem método próprio, um objeto específico e baseia suas conclusões em dados empíricos.

Ao nos debruçarmos sobre estes laudos antropológicos, que integram esses dois feitos, verificamos que são dados antropológicos elaborados segundo os cânones científicos, porque estão fundados em documentos, mapas e provas testemunhais. Portanto, são laudos, do ponto de vista técnico, absolutamente impecáveis (…) e que a meu ver, resolvem a controvérsia fática”.

Fica evidente que a posição majoritária do Supremo que a Constituição de 88 adotou o instituto do indigenato como premissa fundamental para salvaguardar a posse indígena as suas terras tradicionalmente ocupadas. Ou seja, a posse indígena é constitucional, não se perde nos casos de esbulho, expulsões e violência cometidas contra o patrimônio dos povos indígenas, vedado o reducionismo hermenêutico em detrimento do direito dos povos originários.

Marco temporal, uma farsa jurídica

A tese jurídica do marco temporal não nasceu exatamente no âmbito do poder judiciário. Antes do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, esta interpretação jurídica era rotineiramente suscitada nos discursos de parlamentares e de juristas que advogam para os interesses do patronato rural. Cito por exemplo, o discurso do deputado federal Gervásio Silva (PFL-SC), proferido no dia 20 de outubro de 2005, intitulado “Acirramento de conflitos fundiários pela política de demarcação de terras indígenas da FUNAI no Estado”, discorreu[3]:

“[…] e é bom que se repita: a Constituição Federal de 1988 não fala em posse imemorial, mas em terras tradicionalmente ocupadas no presente e de habitação permanente.

[…]

à identificação de uma terra indígena, está completamente divorciado do entendimento atual do STF, externado pela Súmula 650-STF, que consolidou a jurisprudência sobre o reconhecimento de terras indígenas, com base nos seguintes julgados: Recurso Extraordinário n° 219.983-3 – Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJ 17 de setembro de 1999, e Recurso Extraordinário n° 174.488.0 SP – Relator Ministro Ilmar Galvão, 2ª Turma, DJ 13 de agosto de 1999), como todos sabem, esta súmula não reconhece a doutrina de posse imemorial e consagra o princípio jurídico da ocupação atual e permanente das terras tradicionais de ocupação indígena. Explicando que os supostos direitos da suposta comunidade indígena de Araçá só mereciam o abrigo constitucional se os índios lá estivessem em 05 de outubro de 1988”.

Ao que se percebe, essa interpretação restritiva aos direitos dos povos indígenas consistente no “marco temporal”, nasceu justamente de uma leitura equivocada feita a partir da súmula 650 do STF, que preceitua “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Entretanto, é preciso fazer uma leitura dessa súmula em conexão com a matéria posto a julgamento que resultou na edição do citado verbete. O precedente da súmula 650 do STF, é o RE 219.983, tendo em vista o interesse da União Federal na solução de ações de usucapião em terras situadas nos Municípios de Guarulhos e de Santo André, no estado de São Paulo, em vista do disposto no artigo 1º, alínea h, do Decreto-Lei 9.760/1946. Como bem salienta o jurista Roberto Lemos dos Santos Filho “é necessário que os operadores do direito atentem ao fato de que aplicação da Súmula 650-STF deve ser realizada aos casos específicos a que ela tem relação, vale dizer, usucapião de terras indígenas a que se refere o Decreto-Lei 9.760/1946” (SANTOS FILHO, 2005).

Ainda no âmbito do legislativo, cabe citar o Projeto de Lei (PL) 490/2007, de autoria do Dep. Homero Pereira que tem por objetivo alterar a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, também conhecido como Estatuto do Índio, propondo que as terras indígenas sejam demarcadas por lei, ou seja, que a demarcação passe pelo crivo do legislativo. O autor justifica a importância da proposição evidenciando que a “demarcação das terras indígenas extrapola os limites de competência da FUNAI, pois interfere em direitos individuais, em questões relacionadas com a política de segurança nacional na faixa de fronteiras, política ambiental e assuntos de interesse dos Estados da Federação e outros relacionados com a exploração de recursos hídricos e minerais”. Em 15 de maio de 2018, o Dep. Jerônimo Goergen apresentou parecer nesta proposição legislativa no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania, propondo a instituição do marco temporal por meio de lei. Fica evidente que é uma clara iniciativa da bancada ruralista implementar o marco temporal pela via legislativa, como uma espécie de retorno ao nicho de onde nasceu, mas agora com precedentes judiciais. No âmbito da discussão da tramitação da PEC 215/2000, verifica-se de forma reincidente os parlamentares que valem-se do argumento do marco temporal para capitanear apoio à aprovação dessa proposta.

Entretanto, foi no âmbito do judiciário que o marco temporal encontrou terreno fértil, enraizando-se e alastrando-se por toda a estrutura. Seus frutos são decisões liminares, sentenças e acórdãos anulando demarcação de terras indígenas e determinando o despejo de comunidades inteiras. No ano de 2009, por ocasião do julgamento da Petição 3.388, no STF, aparece pela primeira vez, no âmbito no poder judiciário, a tese jurídica denominada “marco temporal”. Segundo esta interpretação jurídica, os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando no dia 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Dessa decisão proferida, tanto as comunidades indígenas quanto o ministério público federal interpuseram recurso de embargos de declaração, buscando com isso, uma nova manifestação da Corte, para se manifestar se as condicionantes se estendiam automaticamente às outras terras ou não. No ano de 2013, o Supremo analisou os recursos de embargos opostos, decidindo que as condicionantes do caso “não vincula(m) juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”.

Mesmo após o Supremo ter afirmado que as condicionantes e, de igual modo, o marco temporal, não eram aplicáveis a outras terras indígenas, vários juízes e tribunais começaram imediatamente a usar essa tese jurídica para suspender processos demarcatórios ou determinar despejos de comunidades indígenas. No caso da terra indígena Limão Verde, do povo Terena, no Mato Grosso do Sul, que foi homologada em 2003, teve sua demarcação anulada pela Segunda Turma do Supremo, com base na tese do marco temporal. O relator, ministro Teori Zavascki, entendeu ausentes os pressupostos antes referidos: ocupação indígena, em outubro de 1988, na área disputada e demonstração daquilo que se chama em Direito de esbulho renitente.

Ao analisar o caso da TI Limão Verde, a jurista Deborah Duprat (2018, p. 93), consignou que as “circunstâncias de fato”, não foram levadas em consideração para caracterizar a resistência Terena ao esbulho perpetrado pelos fazendeiros, citando por exemplo: (a) a missiva enviada em 1966 ao Serviço de Proteção ao Índio; (b) o requerimento apresentado em 1970 por um vereador Terena à Câmara Municipal, cuja aprovação foi comunicada ao Presidente da Funai, através de ofício, naquele mesmo ano; e (c) cartas enviadas em 1982 e 1984, pelo Cacique Armando Gabriel, à Presidência da Funai.

Parecer 01/2017 da AGU, um duro golpe aos direitos indígenas

Como visto, em 2009, o STF fixou as denominadas “salvaguardas institucionais às terras indígenas” no acórdão proferido no julgamento da Pet. n. 3.388/RR (caso Raposa Serra do Sol). Instaurou-se o debate sobre se essas “salvaguardas” ou “19 condicionantes” deveriam ser seguidas em todos os processos de demarcação de terras indígenas. No ano de 2012, foi editada a Portaria de n. 303 pela Advocacia Geral da União (AGU) com o propósito de “normatizar” a interpretação e aplicação das 19 condicionantes. Em 25 de julho de 2012, a Portaria AGU n. 308 suspendeu o início da vigência da Portaria n. 303/2012 em razão da oposição de diversos embargos de declaração ao acórdão do STF na Pet. n. 3.388/RR e de um intenso processo de mobilização dos povos indígenas e de organizações sociais. Em 17 de setembro do mesmo ano, uma nova portaria, a Portaria n. 415 da AGU, estabeleceu como termo inicial da vigência da Portaria n. 303 o dia seguinte ao da publicação do acórdão a ser proferido pelo STF nos referidos embargos.

Em 2013 o STF analisou os embargos opostos no caso da Pet. n. 3.388/RR e decidiu que as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol “não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”. Após a publicação do acórdão do STF nos embargos de declaração, a AGU publicou a Portaria n. 27 de 07 de fevereiro de 2014, determinando à Consultoria-Geral da União e à Secretaria Geral de Contencioso a análise de adequação do conteúdo da Portaria n. 303/2012 aos termos da decisão final do STF. Diversos órgãos da Administração Pública (FUNAI, AGU, PFE/FUNAI, CONJUR/MJ/CGU/AGU) se envolveram em uma controvérsia sobre a vigência e eficácia da Portaria em questão. Em 11 de maio de 2016, o Advogado-Geral da União, por meio do Despacho n. 358/2016/GABAGU/AGU, determinou que a Portaria n. 303/2012 deveria permanecer suspensa até conclusão dos estudos requeridos por meio da Portaria n. 27/2014.

A partir de 2016, com a ascensão de Michel Temer à presidência da república, iniciou-se um acelerado retrocesso dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. Em maio de 2017, quando o ex-presidente da Funai, Sr. Antônio Fernandes Toninho Costa entregou o cargo, acusando o ex-Ministro da Justiça de agir em favor de um lobby conservador de latifundiários e outros interesses da bancada ruralista, inclusive impondo indicações políticas dentro da Funai, o órgão vem sendo dirigido por um general do Exército. A despeito de protestos do movimento indígena nacional, assumiu a presidência da Funai o general Franklimberg Ribeiro de Freitas. Empossado no cargo, Sr. Freitas assinou uma série de medidas controversas, particularmente no que diz respeito à perspectiva de assimilação de povos indígenas, escondida atrás do argumento do desenvolvimento econômico. Enquanto isso, o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) ficou inoperante, corroborado pela falta de interesse do Ministério da Justiça em estabelecer um diálogo com os povos indígenas.

Foi neste contexto, que em julho de 2017, o Ministério da Justiça estabeleceu um grupo de trabalho (Portaria n. 541/2017 do Ministério da Justiça), com vários representantes das forças de segurança e sem a participação de representantes indígenas, para elaborar medidas visando a integração desses povos. Depois de críticas severas por parte do movimento indígena e de organizações da sociedade civil, o ato foi substituído por um similar (Portaria n. 546/2017 do Ministério da Justiça), sob a justificativa de que o objetivo não era assimilação, mas a organização de povos indígenas.

E, no dia 20 de julho de 2017 foi publicado no Diário Oficial da União o Parecer n. 01/2017/GAB/CGU/AGU que obriga a Administração Pública Federal a aplicar as 19 condicionantes que o STF estabeleceu na decisão da Pet. n. 3.388/RR quando reconheceu a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol a todas as terras indígenas. O Parecer tem como objetivo, além de determinar a observância direta e indireta do conteúdo das 19 condicionantes, institucionalizar a tese do “marco temporal” segundo a qual os povos indígenas só teriam o direito às terras que estivessem ocupando na data de 05 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal.

A pretexto de normatizar a atuação da Administração Pública Federal e uniformizar a interpretação constitucional a respeito do processo demarcatório de terras indígenas, o que o Parecer nº 01/2017 da AGU, fez na verdade, foi conceder efeito vinculante e automático à decisão do STF, quando este próprio proibiu essa possibilidade. Na prática este parecer vinculava todos os órgãos da administração pública federal (direta e indireta), atingindo notadamente a Funai e a Procuradoria Especializada da Funai. Os efeitos foram extremamente negativos, porque imediatamente a Funai começou a reanalisar vários procedimentos de demarcação de terras indígenas de todo o país. Outros processos que já estavam na Casa Civil e Ministério da Justiça em estágio avançado, foram devolvidos para a Funai para serem reanalisados. No âmbito da própria AGU, muitos advogados da União que atuavam na defesa dos interesses da União e da Funai, pois as terras indígenas são bens da União, tiveram suas prerrogativas de atuações tolhidas. Em muitos casos, os procuradores da Funai foram obrigados a desistir de fazer a defesa judicial de muitas comunidades indígenas, sob pena de sofrerem procedimento disciplinar. Sem dúvida, este parecer gestado pelo setor ruralista no âmbito do governo de Michel Temer, trouxe sérias consequências aos direitos e interesses dos povos indígenas. Tal parecer foi editado justamente no momento em que Michel Temer precisa do apoio da bancada ruralista para impedir a admissibilidade de denúncia contra si no parlamento brasileiro. A Apib chegou a protocolar representação na Procuradoria Geral da República, mas o caso foi arquivado[4]. Somente em maio de 2020, este parecer foi suspenso pelo STF, após pedido protocolado pela comunidade indígena e demais organizações indígenas e indigenistas, nos autos do processo de repercussão geral que será julgado no próximo dia 23 de junho.

Marco temporal, um genocídio anunciado

O marco temporal é a maior ameaça aos povos indígenas na atualidade. Se aprovado, seus efeitos jurídicos serão capazes de inviabilizar a demarcação de centenas de terras indígenas. O último relatório do Cimi (2021, p. 27), aponta que das 1299 terras indígenas, apenas 422 encontram-se registradas ou homologadas; 282 em alguma fase do processo demarcatório; mas 536 encontram-se sem providência nenhuma. Desde 2016 não há demarcação alguma e os processos iniciados estão totalmente paralisados. Além disso, o marco temporal pode ter efeito retroativo, abrindo a possibilidade para se questionar terras indígenas já demarcadas e homologadas. No STF já tramita um caso assim, trata-se da ACO 2224, que questiona a homologação e demarcação da TI Kayabi, localizada na Amazônia, habitada pelos povos Kayabi, Munduruku e Apiaká. É uma terra consolidada, demarcada há décadas, mas que teve a homologação suspensa com base no marco temporal.

O território é a base física vital para os povos indígenas. Não é possível pensar na sobrevivência de povos sem território. Sem terra demarcada, a reprodução física e cultural dos povos está seriamente comprometida. Há um aspecto muito grave que deve ser levado em consideração que diz respeito ao registro de 114 grupos isolados e de recente contato presente no país. Estes estão seriamente ameaçados pois são povos que vivem de forma autônoma na floresta amazônica e estão localizados em terras ainda pendentes de regularização.

Portanto, não é exagero afirmar que o marco temporal, se aprovado, condenará povos inteiros ao extermínio físico e cultural, caracterizando nesta medida, a prática de genocídio.

Referências

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Sobre o autor: Luiz Eloy Terena é advogado indígena. Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris. Coordenador do departamento jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). E-mail: [email protected]

[1] Este texto é uma adaptação do original: ELOY TERENA, L. O judiciário e as terras indígenas no Brasil: notas sobre teoria do indigenato versus marco temporal. II Seminário Internacional sobre Democracia, Ciudadanía y Estado de Derecho. Ourense: Universidade de Vigo, 2020. Disponível em http://sidecied.com/wp-content/uploads/2021/03/Libro-II-SIDECIED-2020.pdf

[2] “E para que os ditos Gentios que assim decerem e os mais que ha de prezente milhor se conservem nas Aldeas, Hei por bem que sejão senhores de suas fasendas como o são no Certão sem lhe poderem ser tomadas nem sobre elles se lhes fazer molestia, e o Governador com parecer dos ditos Religiosos assignará aos que descerem do Certão logares convenientes para nelles lavrarem e cultivarem e não poderão ser mudados dos ditos logares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro ou tributo algum das ditas terras, ainda que estejão dadas em sesmaria a pessoas particulares por que na concessão destas se reservaria sempre o prejuiso de terceiro, e muito mais se entende e quero se entenda ser reservado o prejuiso e direito dos Indios primarios e naturaes Senhores delas” (PORTUGAL, 1680).

[3] Câmara dos Deputados. Discurso do Dep. Fed. Gervásio Silva. Acirramento de conflitos fundiários pela política de demarcação de terras indígenas da FUNAI no Estado. 20.10.2005. Disponível em:https://www.camara.leg.br/internet/SitaqWeb/TextoHTML.asp?etapa=5&nuSessao=286.3.52.O&nuQuarto=89&nuOrador=2&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=16:56&sgFaseSessao=GE&Data=20/10/2005, acesso em 20 de março de 2020.

[4] APIB. Michel Temer violenta os direitos dos povos indígenas para tentar impedir seu próprio julgamento. Disponível em http://apib.info/2017/07/20/michel-temer-violenta-os-direitos-dos-povos-indigenas-para-tentar-impedir-seu-proprio-julgamento/, acesso em 20 de março de 2020.

Apib convoca povos indígenas para jornada de resistência ao Marco Temporal em junho

Apib convoca povos indígenas para jornada de resistência ao Marco Temporal em junho

Foto: Matheus Veloso

Os povos originários do Brasil vão iniciar mais uma jornada de lutas contra a ameaça do Marco Temporal. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) convocou, no início deste mês, uma mobilização prevista para o dia 23 de junho, em Brasília, data em que estará em pauta o Recurso Extraordinário (RE) n.º 1.017.365. Os povos Xokleng, Kaingang e Guarani da Terra Indígena Xokleng La Klaño, do Estado de Santa Catarina, são o foco deste processo, no entanto, ele foi considerado pela Suprema Corte em 2020 como caso de Repercussão Geral, ou seja, poderá afetar a todos os povos do Brasil. 

A tese do Marco Temporal quer estabelecer que os povos indígenas teriam direito somente às terras em que tivessem a posse física na data de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal. Isso significa um grande retrocesso nos processos de demarcação e no reconhecimento do Brasil como um território plenamente povoado pelos indígenas antes da invasão portuguesa. Esta tese desconsidera o direito originário, nato, congênito dos povos que ocupam tradicionalmente seus territórios, isto é, uma posse anterior à invenção de quaisquer outros direitos e da própria formação do Estado Nacional brasileiro.

A iminência de aprovação desta tese multiplica as invasões de territórios indígenas, os conflitos e atos de violência, especialmente por garimpeiros, grileiros de terras e representantes do agronegócio, interessados na madeira do desmatamento e produção de commodities para exportação. Estes, por sua vez, estão representados no Congresso Nacional pelas bancadas compostas majoritariamente de ruralistas e evangélicos, que tentam cercear direitos fundamentais com os Projetos de Lei: 490/2007, do Marco Temporal; 191/2020, da Mineração em Terras Indígenas; 2633/2020 e 510/2021, da grilagem de terras públicas.

A Apib ressalta que caso haja o adiamento da votação, a mobilização irá se estender de 27 a 30 de junho e, neste caso, todos os demais povos serão convocados para se solidarizar na luta. “Neste momento político de graves ameaças e atropelos aos nossos direitos, sobretudo territoriais, é fundamental fazermos todos e todas o maior esforço para unificar o nosso pensamento e ação a fim de que a nossa luta seja mais forte e garanta o bem viver tão almejado pelos nossos ancestrais, que lutaram para assegurar esses direitos, para nós e as nossas futuras gerações”, afirma a chamado enviado as bases, povos e organizações indígenas de todas as partes do Brasil

Acesse o CHAMADO MARCO TEMPORAL

Apib busca a continuidade do Plano de Barreiras Sanitárias iniciado na pandemia

Apib busca a continuidade do Plano de Barreiras Sanitárias iniciado na pandemia

 

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entrou com um pedido no Supremo Tribunal Federal (STF) para renovar as contratações de Agentes de Proteção Etnoambiental, que são responsáveis por garantir as Barreiras Sanitárias no entorno dos territórios. No ofício protocolado na manhã desta quarta-feira, 4 de maio, destaca-se a importância destas barreiras no controle das invasões dos territórios, diante da “vulnerabilidade dos povos indígenas isolados e de recente contato” e da “crescente invasão aos territórios indígenas”.

O pedido também ressalta a importância de “uma estrutura de trabalho digna”, visto que os trabalhadores contratados enfrentam dificuldades como a falta de materiais e Equipamento de Proteção Individual (EPIs), necessários para desenvolver suas atividades. As barreiras sanitárias (BS) e postos de controle de acesso (PCA) foram criadas para prevenção da COVID-19 e têm papel fundamental na garantia da saúde e bem-estar destes povos, visto que o vírus e suas inúmeras variantes continuam circulando no país. Além disso, sem a renovação dos contratos, a FUNAI não teria condições de garantir a continuidade da proteção pelo número extremamente reduzido de pessoas em seu corpo técnico, que não conseguem atender ao número de demandas que abrangem todo território nacional.

Desde o início da pandemia de covid-19, em março de 2020, a Apib trabalha para cuidar da saúde dos povos indígenas em um esforço de mobilização na ação Emergência Indígena. As barreiras sanitárias implementadas pelo governo até o momento foram em decorrência de ação movida pela Apib e mais seis partidos políticos no Supremo Tribunal Federal.

Leia a petição na íntegra: Pet APIB – Renovação contrato temporários

Apib recorre ao STF para proteger povo Yanomami e denunciar incentivo do governo federal ao garimpo ilegal

Apib recorre ao STF para proteger povo Yanomami e denunciar incentivo do governo federal ao garimpo ilegal

Na manhã desta quinta-feira, 5, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entrou com uma petição no Supremo Tribunal Federal (STF), solicitando a proteção do povo Yanomami, que segue sob ameaça do garimpo ilegal, na região de Roraima, terra indígena (TI) demarcada e homologada pelo Decreto s/n, de 26 de maio de 1992.

De acordo com o advogado da Apib, Eloy Terena, desde 2020 existe uma medida cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e uma decisão do STF, desde maio de 2021, que determina a proteção integral do território, porém esta não foi cumprida.

“Vocês são violentos, seus filhos são violentos. Bolsonaro, busque seus filhos garimpeiros e os leve de volta!”, afirmou a liderança do povo Yanomami, na petição entregue.

A Apib denuncia a convivência do governo federal com os crimes cometidos pelo garimpo em territórios indígenas, que provocou uma nova onda de migração de garimpeiros para os locais de extração de minerais. E a recente sinalização de Bolsonaro, com o pedido para votação do PL 191 em regime de urgência na Câmara, estimulou a violência sobre os povos da floresta.

O relatório da Hutukara Associação Yanomâmi (HAY), divulgado recentemente, mostrou o avanço da destruição promovida, revelando casos de violência sexual sobre mulheres e crianças indígenas, que são abusadas em troca de comida. “Somente depois de deitar com tua filha eu irei te dar comida”, chantageou um garimpeiro, como consta no relatório. Em um ano, a devastação cresceu 46% em relação à 2020. Os garimpeiros buscam, principalmente, ouro e cassiterita no território, mineral de onde se extrai o estanho, matéria-prima utilizada na produção de telas de celular.

Em abril deste ano, uma criança de 12 anos foi estuprada até a morte por garimpeiros. Durante o ataque, outra criança caiu no rio e está desaparecida. A comunidade, que já vinha pedindo socorro há dias, também desapareceu.

A Apib exige “a adoção imediata de todas as medidas necessárias à proteção da vida, da saúde e da segurança das populações indígenas que habitam as TIs Yanomami e Munduruku, diante da ameaça de ataques violentos e da presença de invasores, devendo destacar todo o efetivo necessário a tal fim e permanecer no local enquanto presente tal risco”.

Acesse a Petição APIB sobre YANOMAMI – STF .docx

Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo

Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo

Andressa Zumpano, setor de comunicação CPT Nacional | Imagem de capa: Bruno Kelly|Reuters 

“Classificamos em nossas denúncias que é um genocídio sim. Porque durante as invasões (garimpeiras) estão matando nas armas. Armas de fogo, de cachaça, de  estupros e abuso sexual”, relata liderança Yanomami

Em novembro de 2021 a Hutukara Associação Yanomami (HAY) tomou conhecimento do assassinato de três indígenas do grupo em isolamento voluntário Moxihatëtëma, mortos em um ataque realizado por garimpeiros. A notícia chegou tardiamente, dois meses e meio após o ocorrido, e reflete a situação de vulnerabilidade que a Terra Indígena Yanomami (TIY) se encontra diante da atual invasão garimpeira.

Segundo a HAY, um indígena da região do rio Apiaú, mesmo local onde situa-se o grupo em isolamento, relatou que em agosto de 2021 os Moxihatëtëma aproximaram-se do garimpo “Faixa Preta” na intenção de expulsá-los da cabeceira do rio. Na ocasião, os indígenas foram atacados com armas de fogo pelos garimpeiros, resultando na morte de três “guerreiros Moxihatëtëma”, como denominaram os Yanomami.

Para fins de comprovação da denúncia, um indígena do Alto Mucajaí, que frequentava a região garimpeira e testemunhou o conflito, recolheu uma das flechas utilizada pelos Moxihatëtëma no confronto.

A comunidade dos Moxihatëtëma situa-se no Rio Apiaú, em Mucajaí, Roraima. O garimpo Faixa Preta está na cabeceira do rio, em uma região vizinha ao território dos isolados, conhecida como Serra da Estrutura. Também está a cerca de quatro dias de barco do posto de saúde mais próximo, sinalizando ser uma área de difícil acesso e portanto, um convite aos garimpeiros para explorar, devido à dificuldade de fiscalização.

Segundo denúncia protocolada pela HAY em novembro de 2021, “imagens de satélite indicam que na região há um total de mais de 100 hectares de floresta que já foram destruídos pela atividade ilegal”. A Associação também reforça que “a região do Apiaú é vizinha ao território dos isolados e, por esse motivo, deve ser uma das zonas prioritárias para as ações de combate ao garimpo”.

Dário Kopenawa Yanomami, vice-presidente da HAY, alerta para a proximidade do garimpo ilegal às comunidades Yanomamis e povos isolados na região do Apiaú cada vez mais está aumentando, cada vez mais está crescendo o garimpo na Serra da Estrutura. E eles (os Moxihatëtëmaestão ao redor dos garimpeiros ilegais. Então isso é um risco muito grande porque eles são vulneráveis, eles são povo da floresta que não foi contactado com os não indígenas, nem conosco, então isso é um risco muito grande pros nossos parentes isolados”.

Risco de extermínio

“Eu não queria que eles morressem sozinhos, morressem sem saber… Sem ver quem um dia matou eles. É o garimpeiro que mata. Porque garimpeiro vai longe, anda muito. Na beira do rio até chegar na montanha, vai procurar ouro na montanha”, narra o xamã Yanomami Davi Kopenawa, em trecho do livro “Cercos e resistências ― povos indígenas isolados na Amazônia brasileira” (Instituto Socioambiental (ISA), 2019).
                                                      Davi Kopenawa, presidente da Hutukara Associação Yanomami, mostra flecha de indígenas isolados|Evilene Paixão/ISA

Em abril de 2022 a Hutukara Associação Yanomami e Associação Wanasseduume Ye’kwana, em parceria com o ISA, lançaram o relatório “Yanomami Sob Ataque”, que traz uma série de denúncias sobre os impactos do garimpo ilegal dentro da totalidade da TIY em Roraima. O relatório destaca que além dos riscos de conflitos entre indígenas isolados e garimpeiros, há também uma grave ameaça epidemiológica devido à vulnerabilidade na qual os indígenas isolados se encontram, ambos podem levar ao extermínio dos Moxihatëtëma.

“A possibilidade de um contato forçado desse grupo com os garimpeiros é uma das questões mais preocupantes no contexto da invasão à TIY, e, por esse motivo, deve ser uma das zonas prioritárias para as ações de combate ao garimpo. A HAY vem insistentemente informando os órgãos competentes sobre a elevada pressão em que se encontram os Moxihatëtëma com o avanço do garimpo nas regiões da Serra da Estrutura, Couto Magalhães, Apiaú e alto Catrimani, com elevado risco de confrontos violentos que podem resultar no extermínio do grupo. No entanto, o que tem sido feito tem produzido pouco resultado”, aponta trecho do relatório.

Estevão Benfica, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA) que atua com os Yanomami desde 2013, menciona o agravamento dos riscos à saúde dos indígenas isolados, considerando que estes nunca receberam nenhum tipo de acompanhamento médico ou qualquer outra medida preventiva.

“Temos essa grande preocupação, porque eles nunca receberam nenhum tipo de vacinação, então há um risco grande, principalmente nesse contexto da Covid,  como também de várias outras doenças que podem ter efeitos muito letais”, reforça o pesquisador.

A HAY salienta que os confrontos com garimpeiros, assassinato dos Moxihatëtëma e aumento do garimpo nas áreas que circundam os indígenas isolados, foram insistentemente denunciados às autoridades públicas. No entanto, não houveram ações efetivas que garantissem a proteção dos Yanomami, dos indígenas isolados, bem como da proibição e fiscalização do garimpo ilegal na TIY.

A Hutukara Associação Yanomami pegou todas as informações do assassinato e  sistematizou, encaminhou pros órgãos públicos, para o Ministério Público Federal, Exército, FUNAI, Polícia Federal e também o Estado Brasileiro. A gente encaminhou essa denúncia para as instituições públicas, eles são responsáveis por proteger o território, proteger o povo da floresta, principalmente os isolados…Avisamos para eles tomarem conhecimento e mandar fazer uma investigação e retirar os garimpeiros da terra Yanomami“, afirma Dário Yanomami.

A ineficiência do Estado na proteção dos indígenas isolados e o avanço do garimpo ilegal na região do Apiaú, Serra da Estrutura e alto Catrimani tem provocado deslocamentos forçados da comunidade Moxihatëtëma, que até recentemente viviam em uma casa coletiva com dezessete seções familiares, com uma população estimada de 80 pessoas.

Em 2021, o Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal (SMGI) da TIY identificou, através de imagens de satélite, a existência de uma segunda casa coletiva pertencente ao grupo isolado. Há duas hipóteses para a construção desta nova casa: a primeira, especula que houve o crescimento da comunidade e portanto a necessidade de uma nova residência; já a segunda fundamenta-se na possibilidade de uma acelerada aproximação do garimpo ilegal, por isso o grupo teria buscado um local mais afastado.

                                             Nova casa dos moxihatëtëma registrada pelo satélite CBERS-4, composição colorida RGB. Relatório “Yanomami Sob Ataque”. 2022.

O monitoramento mostra a proximidade de pistas de pouso e acampamentos garimpeiros a menos de 14 km desta segunda casa, segundo informações citadas no último relatório.

O documento também denuncia que este não é o primeiro conflito entre os Moxihatëtëma e garimpeiros. Em 2019, professores Yanomami do Alto Catrimani denunciaram à HAY o assassinato de dois caçadores Moxihatëtëma, que teriam “sido mortos com tiros de espingardas após terem defendido com flechas seus roçados de uma tentativa de roubo por parte dos garimpeiros. Na ocasião, a HAY informou os órgãos competentes, mas não obteve respostas sobre uma eventual investigação”.

Isolamento Voluntário

Eles são difíceis de encontrar, têm um caminho e outro lugar para esconder. Eles abandonam a casa e têm um lugar para esconder”, Davi Kopenawa descreve no livro “Cercos e Resistências”, a relação dos indígenas Moxihatëtëma com o território e os demais Yanomami que habitam a TIY.

                                                               Maloca Moxihatëtëma avistada em 2016, durante sobrevôo da FUNAI. Foto: Guilherme Gnipper/ FPEYY/ Funai

Cogita-se que Moxihatëtëma vem de um conjunto de aldeias do subgrupo yanomami de língua Yãroamë, que desde a década de 1920, ocupou o interflúvio Mucajaí-Catrimani até o momento dos seus primeiros contatos.

Relatos históricos apontam que a partir da década de 1970 já testemunhava-se o isolamento voluntário dos Moxihatëtëma, após a intensificação dos conflitos entre os diferentes grupos yanomami da região, devido ao descontrole epidemiológico causado pelos primeiros contatos durante a abertura da Perimetral Norte, onde Moxihatëtëma foram “acusados” pelos demais grupos indígenas como causadores das doenças que afligiam as aldeias.

“Alguns grupos Yanomami tem outras concepções, onde acreditam que tradicionalmente ninguém morre por acaso, sempre há um agente causador daquela doença e normalmente a doença é associada a uma espécie de feitiço. Então, à medida que alguns grupos estavam morrendo de sarampo, eles não entendiam que aquele sarampo estava associado, por exemplo, à mobilização dos trabalhadores da estrada, eles associavam ao ‘feitiço’ de outros grupos. Usando então os Moxihatëtëma como ‘bode expiatório'”, explica Estevão.

A TIY possui oito registros de grupos indígenas em isolamento, sendo Moxihatëtëma o único grupo confirmado pela FUNAI. O grupo passou a ser monitorado pela Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami e Ye’kwana e pela Hutukara Associação Yanomami a partir de 2011.

Genocídio do Povo Yanomami

                                                                       Indígenas Yanomami protestam em São Gabriel da Cachoeira-AM. Foto: Paulo Desana/Amazônia Real

Pelo numero de vítimas, classificamos esses ataques como genocídio. Isso realmente está acontecendo, um genocídio”.

A frase estarrecedora, dita por Dário Kopenawa durante esta entrevista, traz a urgência da grave denúncia que o povo Yanomami vem, incansavelmente, fazendo nos últimos anos: há um genocídio em curso. São incontáveis os ataques e os tipos de violências praticadas pela invasão garimpeira dentro da TIY.

“Violência de morte, violência da saúde, violência dos estupros, violência dos assassinatos e violência na destruição da mãe natureza”, relata a liderança, após listar cronologicamente as últimas denúncias realizadas pela HAY ao Estado Brasileiro, todas sem respostas eficientes.

O território Yanomami ocupa uma área de aproximadamente 230.000 km², na fronteira entre Brasil e Venezuela, abrigando cerca de 26 mil indígenas. Demarcada em 1992, a TIY é a maior do Brasil, com 9,6 milhões de hectares, e nela vivem os povos Yanomami e Ye’kwana.

Segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil 2021, publicado pela Comissão Pastoral da Terra, somente no último ano foram registradas 109 mortes em decorrência de conflitos, com um aumento de 1.110% em relação a 2020. Do total, 101 mortes foram de indígenas Yanomamis, todas em consequência do garimpo ilegal.

A HAY denuncia que, atualmente, cerca de 20 mil garimpeiros estão dentro da TIY, um número de invasores muito aproximado da totalidade de indígenas Yanomami. O último relatório publicado comunica que este é “o pior momento de invasão desde que a TI foi demarcada e homologada, há trinta anos”.

Segundo dados da plataforma MAPBIOMAS, entre os anos de 2016 a 2020, o garimpo ilegal dentro da TIY cresceu cerca de 3.350%. Dados obtidos pelo SMGI sinalizam que a calha do rio Uraricoera é a região mais afetada pela atividade, concentrando 45% da área degradada pelo garimpo ilegal no território.

                                                             Área destruída pelo garimpo na TIY de outubro de 2018 a outubro de 2021, SMGI.

Os números demonstram o terror que os Yanomami vêm sofrendo, especialmente nos últimos dois anos, quando estiveram cada vez mais encurralados pela atividade garimpeira em seu território, durante a pandemia de COVID 19.

“A violência cresceu, os impactos e a destruição da floresta e água, com a poluição do mercúrio. Também cresceu muito as ameaças de morte”, relata Dário Kopenawa, acerca do avanço do garimpo nos últimos anos.

Dezenas de denúncias realizadas pela HAY e dirigidas às diversas instituições públicas do Estado brasileiro, apontam que entre os meses de abril e maio de 2021, os ataques se intensificaram. Os invasores têm utilizado diversas “armas” contra os indígenas, que vão desde o uso de armas de fogo ou bombas de gás lacrimogêneo contra as comunidades, até a introdução de álcool e drogas em aldeias, induzindo até mesmo crianças ao uso.

Em 10 de maio, a comunidade do Palimiú sofreu um primeiro ataque quando garimpeiros armados dispararam tiros contra a aldeia. Poucos dias depois, membros da comunidade informaram que duas crianças haviam desaparecido durante a fuga, e foram posteriormente encontradas afogadas, sem vida.

Em 30 de julho, um indígena Yanomami foi atropelado por um avião de garimpeiros em Homoxi. Em outubro, duas crianças que brincavam na comunidade de Macuxi Yano morreram por afogamento após terem sido derrubadas e afundadas pela correnteza gerada por uma draga garimpeira, que operava a poucos metros da comunidade.

Todas as denúncias acima citadas foram divulgadas no relatório “Yanomami Sob Ataque: garimpo ilegal na terra indígena Yanomami e propostas para combatê-lo”, em abril de 2022. Poucos dias após esta publicação, uma novo caso expôs o agravamento da situação de conflito na TIY.

No dia 25 de abril de 2022, a HAY denunciou que uma adolescente Yanomami de doze anos foi estuprada e brutalmente assassinada por garimpeiros na aldeia Arakaçá. Na ocasião, uma mulher foi sequestrada e uma criança de apenas três anos jogada no rio, seu corpo segue desaparecido.

A comunidade onde residiam as vítimas foi encontrada totalmente queimada durante visita da Polícia Federal, poucos dias após o incidente. Estima-se que cerca de 25 indígenas que ali residiam desapareceram, sem nenhum paradeiro e sem nenhuma resposta das autoridades comunicadas até o momento.

As lideranças Yanomami já alertavam a grave situação vivida pela comunidade Arakaçá, alertando para a introdução de “um pó branco e cigarro” trazidos por garimpeiros, que conduziam até mesmo crianças ao uso.

Insuficiência do Estado

Somente em 2021, após um acúmulo de denúncias protocoladas pela Hutukara, deflagraram-se operações executadas pela Polícia Federal, com o auxílio da Força Nacional de Segurança Pública na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Estas operações ocorreram em decorrência de decisões judiciais que respaldam o dever do Estado na proteção do território indígena, sendo estas: Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709, e na Ação Civil Pública nº 1001973-17.2020.4.01.4200, que tramita na Justiça Federal de Roraima.

Estevão Benfica destaca que, apesar de executadas, essas operações só ocorreram “por causa de uma pressão principalmente do judiciário e da opinião pública, apresentam ações ineficazes e insuficientes”.  

Dário Yanomami relembra que “durante seis anos foram feitas bastante denúncias,  através das comunidades, das lideranças e fóruns de lideranças, também durante elaboração de planos de gestão territorial”.

A Hutukara Associação Yanomami e Associação Wanasseduume Ye’kwana, trazem uma série de recomendações e propostas de resolução para o problema do garimpo ilegal em seu território, ao final do relatório “Yanomami Sob Ataque”.

“Ao contrário do que afirmam aqueles que têm interesse em promover a extração de ouro na TIY, o garimpo não é um problema sem solução. O assédio ao território e ao povo Yanomami pode ser controlado a partir de um conjunto de ações para assegurar seus direitos, mas que exigem vontade política para garantir uma atuação eficiente e coordenada do Estado e a articulação entre os órgãos e agentes responsáveis”.

Entre as recomendações prioritárias, destaca-se a necessidade de estratégia de “Proteção Territorial consistente”, com objetivo de desmontar todos os focos de garimpo, bem como a provisão das Bases de Proteção Etnoambientais em locais estratégicos. O relatório também destaca a urgência no provimento de projetos “que ofereçam uma alternativa de renda para as comunidades indígenas vizinhas às áreas de garimpo. Tais iniciativas são relevantes sobretudo para neutralizar o assédio dos garimpeiros aos jovens Yanomami, que com frequência são seduzidos pelas promessas de bens e dinheiro que o trabalho no garimpo oferece”.