19/mar/2021
Foto: Eric Marky Terena – Mídia Índia
Anexado ao processo que corre no STF, manifesto aponta grave ameaça também aos nativos de recente contato
Oito médicos especializados em saúde indígena com experiência junto a povos isolados e de recente contato assinam uma carta na qual manifestam preocupação com a vigência de uma lei aprovada pelo Congresso, que permite a presença de missionários em terras habitadas por indígenas isolados.
O documento, de 18 páginas, foi protocolado em petição nesta quinta-feira no Supremo Tribunal Federal (STF) pela Articulação dos Povos Índigenas do Brasil (Apib), entidade que questiona a constitucionalidade da lei no Supremo, em vigor em plena pandemia de Covid-19.
O grupo critica o argumento da Advocacia-Geral da União (AGU) manifestada no processo no STF de que a presença de missionários religiosos não oferece riscos aos povos isolados caso haja “submissão compulsória daqueles à equipe de saúde e aval do médico responsável”.
Os médicos questionam a classificação da lei 14.021 como “medidas de proteção social” de combate à pandemia e citam o artigo 13 como um dos “pontos obscuros da lei” que autoriza “a permanência de missões de cunho religioso que já estejam nas comunidades indígenas, após avaliação da equipe de saúde e aval do médico responsável”. A Apib pede que o STF declare inconstitucional texto do artigo sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em julho do ano passado.
A restrição ao ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados é diretriz da política indigenista desde 1987, apontam os médicos na abertura da carta ao qual O GLOBO teve acesso. Para eles, tal artigo traz imenso retrocesso à política indigenista no país e grave ameaça a esses povos.
– O que nos espanta é como esse artigo foi incluído em um projeto de lei que se pretende a dar proteção a esses povos. Já não teria sentido fora de um contexto de pandemia, quanto mais agora, totalmente fora de cabimento. Sem contar que existe grande responsabilidade de um médico em liberar um missionário em terras indígenas, uma vez que isso pode trazer consequências drásticas – afirma Lucas Albertoni, integrante do Observatório dos Povos Isolados (OPI) e um dos médicos que assinam a carta.
– A questão chave é que, num momento de pandemia, não existe qualquer benefício da presença desses missionários em território que supere o risco de contágio, pois não há protocolos para a presença dele nessas áreas. Até mesmo os funcionários essenciais da Funai precisam de protocolos para permanecer nessas áreas, passarem por rigorosa testagem e período de quarentena – argumenta.
Assinam a carta além de Albertoni, os médicos Ana Lúcia Pontes; Clayton de C. Coelho; Douglas A. Rodrigues; Erik L. Jennings Simões; Paulo Cesar Basta; Sarah Barbosa Segalla e Simone Ladeia Andrade.
Os especialistas também argumentam que portarias emitidas antes e depois da pandemia pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e Fundação Nacional do Índio (Funai) reforçam a necessidade de suspensão de todas as atividades que impliquem o contato com comunidades indígenas isoladas.
“Devido às situações de vulnerabilidade decorrentes do isolamento, uma vez que os indígenas isolados não recebem vacinas, não existe infraestrutura para atendimento a eventuais intercorrências médicas, a possibilidade de contato remoto com equipes de saúde é absolutamente limitada e, em caso de haver a necessidade de remoção para equipamentos de saúde especializados, a operação logística de transporte é sobremaneira custosa e complexa”, diz trecho da carta.
Os médicos sustentam ainda que a chance de propagação de microrganismos transmissores de doenças infecciosas e parasitárias “constitui ameaça real, sobretudo nos tempos sombrios da pandemia de Covid19”.
“Vale lembrar a enorme depopulação, registrada em passado recente, em consequência de epidemias de doenças contagiosas deflagradas pelo contágio que segue ao contato com grupos indígenas isolados. Outro ponto a ser considerado é o risco iminente de agentes externos às comunidades trazerem prejuízos à autodeterminação étnica desses povos e à manutenção de seus aspectos culturais ancestrais”, diz a carta ao mencionar exemplos de povos afetados por doenças transmitidas por missionários no passado como os Krenakarore e o povo Zoe´e.
Brecha para atuação de fanáticos
No argumento da Apib, o artigo 13 da lei abre uma brecha para a atuação de missionários e religiosos fundamentalistas evangélicos que buscam contato com índios isolados na tentativa de convertê-los para sua religião.
A defesa jurídica da Apib afirma ainda na petição que o parágrafo ameaça a integridade física dos povos indígenas isolados, garantida não somente pela Constituição como também pela Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas, de 2016, da qual o Brasil é signatário. Cita ainda como espinha dorsal de seu argumento o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, cujo artigo 18 defende que a liberdade de crença não pode se sobrepor ao direito à saúde.
“A liberdade de manifestar a própria religião ou crença poderá ser limitada para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas”, diz trecho da petição ao citar o pacto.
Revelações do GLOBO sobre a conduta do pastor, missionário e ex-coordenador de índios isolados da Fundação Nacional do Ìndios (Funai) Ricardo Lopes Dias tornaram insustentável a sua permanência no cargo. Dias Lopes foi exonerado pelo Ministério da Justiça.
18/mar/2021
A Justiça Federal na Bahia acatou integralmente pedido do Ministério Público Federal (MPF) em uma Ação Civil Pública contra a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), com o fito de impedir a aplicação da Instrução Normativa nº 9 da FUNAI (IN 09), de 16 de abril de 2020, sobre as Terras Indígenas localizadas na Bahia com processo de demarcação não concluído.
A 12ª Vara da Justiça Federal da Bahia determinou que as Terras Indígenas delimitadas, declaradas, demarcadas fisicamente, bem como as áreas em estudo de identificação e delimitação, as já formalmente reivindicada por grupos indígenas e as terras dominiais indígenas, ainda que não plenamente regularizadas sejam mantidas no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) ou, caso já excluídas, que sejam reinseridas. A Justiça fixou multas diárias que vão de 100 a 500 mil reais em caso de descumprimento pela Funai das determinações judiciais.
A IN 09 possui diversos vícios que vão desde a violação ao caráter originário dos direitos territoriais indígenas e ao entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) quanto à natureza declaratória do processo de demarcação, até a violação da boa-fé objetiva por afronta à tutela da confiança. Ainda, transforma a Funai em instância de certificação de imóveis para posseiros, grileiros e loteadores de Terras Indígenas (TIs). Desse modo, o ato administrativo em questão insere-se como mais uma das infelizes iniciativas relativas aos direitos territoriais indígenas que, em conjunto, constituem o que se pode chamar de revisionismo demarcatório, em contexto político de escalada cronológica de destruição dos direitos indígenas.
No Estado da Bahia há 25 terras indígenas desconsideradas pela IN 09 e que, antes da edição da Instrução, havia apenas três certificações do SIGEF que incidiam sobre terras indígenas, duas na TI Comexatiba e uma outra na TI Caramuru/Paraguassu. Logo na semana em que a norma foi publicada pela FUNAI, o número de certificações saltou para 35, com mais oito na semana seguinte. Dessa forma, os proprietários de imóveis rurais que estiverem sobrepostos com essas terras indígenas, poderão obter declarações do SIGEF sem essa informação, criando um incomensurável risco não só para os indígenas e para o meio ambiente, como, também, para aqueles que vierem a participar dos negócios jurídicos envolvendo tais bens, dada a omissão de informação relevante.
18/mar/2021
Negativa ou omissão deliberadas na demarcação das terras indígenas configura crime de genocídio
Por Luiz Eloy Terena e Deborah Duprat
A América, antes de sua invasão, era idealmente pensada como um espaço quase sobrenatural, à margem do conhecimento, uma vez que as fronteiras do mundo coincidiam com as fronteiras do conhecimento.
Uma vez ocupado esse território, ele passa a constituir a exterioridade da Europa, o local do “outro“. Esse “outro”, por sua vez, é percebido como anômalo, ou seja, de uma maneira contranormativa a partir da qual se revela uma forma patológica, irregular e desviada de existência e conduta.
A concepção dos povos originários da América como inferiores e a violência do projeto colonial, com morte, desterritorialização e captura de modos de vida, vão alimentar, em larga medida, as teorias raciais do século XIX e a própria formação dos Estados nacionais, com a noção de homogeneidade que lhe é correlata.
A combinação desses ingredientes culminou no nazismo e no holocausto judeu, chamando a atenção da Europa, pela primeira vez, para o fenômeno da eliminação dos “seus outros“.
Em 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, foi promulgada, em Paris, a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Esse tratado se vale do conceito de genocídio cunhado por Raphael Lemkin, em obra doutrinária de 1944, a qual, referindo-se às técnicas nazistas, inspira-se nas partículas genos (raça, tribo) e cídio (assassinato).
Já em seu art. 1° a Convenção diz que o genocídio é crime tanto em tempo de paz como em tempo de guerra e o define, em seu art. 2o, como a prática de atos cometidos com a intenção de “destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.
O art. 2o, “C”, contém um comando importante, segundo o qual constitui ato de genocídio “submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”. Toda essa disciplina sobre o genocídio foi reproduzida no art. 6o do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI).
O dispositivo por último referido, presente tanto na Convenção quanto no Estatuto de Roma, tem sua gênese na compreensão de que um mundo é sempre a projeção de padrões significativos no espaço que rodeia a experiência viva. Por isso, quando há invasão do espaço de intercâmbio simbólico, uma civilização deixa de ser vital e entra numa espiral de desesperança e desintegração.
A Constituição brasileira de 1988, porque resultado de lutas, incorpora muitas e diversas políticas identitárias e configura uma sociedade nacional plural, ao mesmo tempo que conforma o Estado como instância descolonizadora.
No plano internacional, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho disciplina uma nova relação do Estado nacional com o seu “povo”, circunstância facilmente identificada se confrontada com o texto normativo que lhe é anterior e que é por ela expressamente revogado: a Convenção 107 da mesma OIT.
Enquanto esse último documento tinha como propósito a assimilação das chamadas “minorias étnicas” à sociedade nacional, o presente, já em seu preâmbulo, evidencia a ruptura com o modelo anterior,
Está expresso em seu texto: “considerando que a evolução do direito internacional desde 1957 e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais em todas as regiões do mundo fazem com que seja aconselhável adotar novas normas internacionais nesse assunto, a fim de se eliminar a orientação para a assimilação das normas anteriores; reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas, religiões, dentro do âmbito dos Estados ondem moram” (…).
Todos esses textos normativos, por sua vez, têm a terra como elemento essencial ao exercício dos direitos que passam a ser então reconhecidos aos povos indígenas.
A centralidade da terra está exatamente no fato de ser o espaço de intercâmbio simbólico, que, uma vez suprimido, leva ao colapso do mundo da vida coletiva. Essa circunstância foi ressaltada no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, em vários votos.
Veja-se, por exemplo, aquele proferido pelo ministro Menezes Direito: “não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do corpo do art. 231 da Constituição” (…).
É nela e por meio dela que eles se organizam. É na relação com ela que forjam seus costumes e tradições. É pisando o chão e explorando seus limites que desenvolvem suas crenças e enriquecem sua linguagem, intimamente referenciada à terra. (…) Por isso, de nada adianta reconhecer-lhes os direitos sem assegurar-lhes as terras, identificando-as e demarcando-as“.
A negativa ou omissão deliberadas na demarcação das terras indígenas configura o crime de genocídio na modalidade inscrita no artigo 2o, “C“, da Convenção, e no artigo 6o, “c”, do Estatuto de Roma, ou seja, mata-se um povo quando lhe são impostas condições de vida capazes de levar à sua destruição física.
Seus membros morrem ou aqueles que sobrevivem se submetem a um processo de integração da cultura dominante, assimilando a linguagem e o sistema de valores do colonizador. O povo preexistente deixa de existir. Foi o que aconteceu com vários povos indígenas ao longo do projeto colonial.
Assentadas essas premissas, é preciso denunciar que está um curso um processo de genocídio dos indígenas no Brasil, capitaneado pelo presidente da República. Discursivamente, ele trata esse segmento da sociedade nacional como inferior e defende a sua “evolução”, mediante a integração à sua “cultura”, sim, à “cultura” de Jair Bolsonaro.
E não admite que suas terras sejam demarcadas. São dele afirmações tais como: “com toda a certeza, o índio mudou, tá evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”; “[o]s índios não falam nossa língua, não têm dinheiro, não têm cultura. São povos nativos. Como eles conseguem ter 13% do território nacional?“; “não tem terra indígena onde não tem minerais. Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazônia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa balela de defender terra pra índio“; “pode ter certeza que se eu chegar lá (Presidência da República) não vai ter dinheiro pra ONG. Se depender de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola“; “em 2019 vamos desmarcar [a reserva indígena] Raposa Serra do Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros“.
Mas não se trata apenas de estratégia retórica. O seu governo, desde o início, vem acumulando atos que inviabilizam a demarcação de terras indígenas. No ato de posse, assinou a Medida Provisória 870, de 1o de janeiro de 2019, estabelecendo a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, transferiu a supervisão da Fundação Nacional do Índio (Funai), historicamente vinculada ao Ministério da Justiça (MJ), tem a sua supervisão transferida para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Também a atribuição que sempre esteve na Funai, de realizar a identificação e delimitação das terras indígenas passa para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), também ficando nesse ministério, e não mais no MJ, a competência para expedir portaria declaratória das terras indígenas.
Embora o Congresso Nacional não tenha aprovado a MP nesse ponto, restou evidente o propósito de Bolsonaro de colocar nas mãos do agronegócio os interesses indígenas.
Sergio Moro, então ministro da Justiça do governo Bolsonaro, devolveu para a Funai todos os processos que se encontravam em sua pasta para expedição de portaria declaratória ou decreto de homologação de áreas indígenas, dando um passo atrás, em contradição com a própria etimologia da palavra “processo”, que vem do latim “procedere”, “avançar”, “adiantar”.
Antes, convocou a Força Nacional por ocasião do “Acampamento Terra Livre”, em 201915), mobilização tradicional dos povos indígenas que acontece há muitos anos, de forma absolutamente pacífica.
O presidente da Funai é contra a demarcação de terras indígenas. Assessorou a bancada ruralista na CPI contra o Incra e a Funai 6). Em 16 de abril de 2020, baixou a Instrução Normativa 09, determinando que só ingressem no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) as terras indígenas homologadas, deixando sem nenhuma proteção aquelas já identificadas, com relatório publicado, aquelas com portaria declaratória e outras com restrição de uso com presença de povos indígenas isolados e de recente contato. A ausência delas no SIGEF permite que passem para o domínio privado.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) ingressou recentemente com arguição de descumprimento de preceito fundamental no Supremo Tribunal Federal, que veio a ser protocolada sob o número 709.
O seu propósito é a adoção de determinadas providências para o enfrentamento da Covid–19 em territórios indígenas. Ali se afirma que os discursos do presidente da República contra esses povos levaram a ondas de invasões de suas terras, inclusive no que diz respeito aos indígenas isolados e de recente contato.
Um dado relevante a respeito é o desmatamento e a mineração em terras indígenas demarcadas, que apresentaram um aumento considerável a partir de 2018. Dados do PRODES, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), revelam que, em 2019, a taxa anual de desmatamento (avaliada entre agosto de 2018 e julho de 2019) em toda a Amazônia foi de 34,41%, mas que esse incremento foi de 80% quando consideradas apenas as terras indígenas!71.
Os povos indígenas permitiram à sociedade brasileira uma transformação capaz de fazer do mundo um lugar mais justo, mais atento à natureza, à diversidade, à dimensão do tempo e do cuidado, e ao prazer da arte e da festa. Bolsonaro os está matando.
LUIZ ELOY TERENA – Advogado indígena e coordenador da Assessoria Jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Doutor pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França.
DEBORAH DUPRAT – Advogada e ex-Procuradora Federal.
Artigo publicado originalmente publicado no Jota.info
17/mar/2021
Lideranças do povo denunciam aumento das invasões garimpeiras com a entrada de maquinário pesado na região do igarapé Baunilha, em Jacareacanga
O Ministério Público Federal (MPF) pediu atuação urgente de forças federais para conter o avanço da invasão de garimpeiros na região do igarapé Baunilha, em Jacareacanga, no oeste do Pará, dentro do território do povo indígena Munduruku. Denúncias apontam um recrudescimento das invasões a partir do último dia 14, com a entrada de grande número de pás-carregadeiras.
O movimento dos garimpeiros está sendo monitorado por helicópteros e indica uma ação orquestrada de grupos criminosos em associação com a pequena parcela de indígenas que atuam a favor do garimpo.
Lideranças munduruku enviaram documentos ao MPF informando a situação, pedindo apoio das autoridades e informando que os invasores estão fortemente armados e vêm fazendo ameaças aos que resistem ao avanço dos garimpeiros. Para o MPF, há risco iminente de um conflito no interior da terra indígena Munduruku, diante da articulação dos indígenas contrários à mineração ilegal para combater diretamente a entrada das máquinas.
Em documentos enviados à Polícia Federal, que já investiga a atuação de grupos criminosos dentro da área indígena, o MPF pede providências para conter o avanço dos garimpeiros, se necessário com o apoio de outras forças policiais. A requisição foi feita em caráter de urgência. Desde o ano passado o MPF busca a realização de operações para coibir as invasões garimpeiras na região.
Em agosto de 2020 chegou a ser iniciada uma ação de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) que foi interrompida após uma visita do ministro do meio ambiente Ricardo Salles e da intervenção do Ministério da Defesa. As circunstâncias da interrupção incluíram suspeitas de vazamento de informações sigilosas e transporte de garimpeiros em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) e estão sendo investigadas em dois inquéritos do MPF.
A fiscalização contra os garimpos ilegais nas terras do povo Munduruku foi requisitada pelo MPF em ação judicial proposta na Justiça Federal em Itaituba em junho de 2020, diante do avanço dos garimpeiros ilegais dentro do território, provocando desmatamento, contaminação de rios e levando tráfico de drogas, prostituição e também o novo coronavírus.
17/mar/2021
O Conselho Nacional dos Direitos Humanos – CNDH aprovou na sexta (12 de março) recomendação à Fundação Nacional do Índio – Funai para a adoção de medidas que garantam os direitos humanos dos povos indígenas que habitam a Terra Indígena Uru Eu Wau Wau.
Além da Funai, a Recomendação nº 04/2021 do CNDH é direcionada à Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde – Sesai, ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio, à Superintendência da Polícia Federal em Rondônia e à Polícia Militar de Rondônia.
A Terra Indígena (TI) Uru Eu Wau Wau está localizada no centro oeste de Rondônia. Na TI habitam o povo Oro Win, o povo Uru Eu Wau Wau o povo Amondawa, além de povos indígenas em situação de isolamento. A região é historicamente alvo de invasões de garimpeiros, de desmatamentos, roubo de madeira e grilagem de terra.
No documento aprovado pelo colegiado durante a 16a Reunião Extraordinária, o CNDH recomenda à Funai que, diante da pandemia provocada pelo novo coronavírus, sejam implementadas práticas sanitárias e epidemiológicas específicas para povos indígenas isolados no caso de contatos e/ou surtos epidêmicos, por meio da elaboração de plano de contingência.
A recomendação se embasou no relatório da missão de levantamento de informações sobre a TI Uru Eu Wau Wau, realizada pelo consultor ad hoc do CNDH, Fabricio Amorim, em outubro de 2020, e na Resolução CNDH nº 44, de 10 de dezembro de 2020, que dispõe sobre princípios, diretrizes e recomendações para a garantia dos direitos humanos dos povos indígenas isolados e de recente contato, bem como para a salvaguarda da vida e bem estar desses povos.
Leia aqui o Relatório da Missão: http://bit.ly/3ln5eoX
Leia a íntegra da Recomendação nº 04/2021: http://bit.ly/2P36UrC
16/mar/2021
Na tarde desta terça-feira (16), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), homologou parcialmente o Plano Geral de Enfrentamento à Covid-19 para Povos Indígenas, apresentado pelo governo Bolsonaro. Além disso, declarou inconstitucional e suspendeu a resolução da Funai (n°. 4, de 22 de janeiro de 2021) que restringia a autodeclaração de indígenas.
O governo Bolsonaro, através da Funai, extrapolou seus limites legais de atuação ao elaborar critérios jurídicos para definir quem é ou não indígena, em total desacordo com a Constituição Federal de 1988 e com a normativa internacional a qual o Brasil é signatário.
A decisão foi tomada nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, protocolada em junho de 2020 pela Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (APIB) e seis partidos políticos com representação no Congresso Nacional. Na oportunidade o Ministro declara uma profunda desarticulação por parte do governo.
O STF deu prazo de 48 horas para que o Ministério da Justiça indique as pastas responsáveis pelo detalhamento e execução das ações de acesso à água potável e saneamento, com o propósito de enfrentar a pandemia entre os indígenas. E acatou o pedido da arguição que assegura prioridade na vacinação dos povos indígenas de terras não homologadas e urbanos sem acesso ao SUS, em condições de igualdade com os demais povos indígenas. Na decisão, o ministro afirmou que o critério fundamental para o reconhecimento dos povos indígenas é a autodeclaração.
Por fim, a decisão determina que o Ministério da Saúde disponibilize o acesso às informações do SIASI (Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena) aos técnicos indicados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e prestar os esclarecimentos requeridos sobre as equipes volantes que atuam entre os indígenas.
16/mar/2021
Povo de recente contato, os Arara pedem pela conclusão da regularização fundiária para colocar fim aos conflitos e impedir o desmatamento
Altamira (PA) – Movidos pela urgência de garantir seus direitos para preservar suas vidas e território, o povo Arara da Terra Indígena Cachoeira Seca, oeste do Pará, lança nas plataformas digitais a campanha “Povo Arara – Guardiões do Iriri”, nesta terça-feira, 16 de março, Dia Nacional de Conscientização sobre as Mudanças Climáticas. A Iniciativa da campanha é da Associação Indígena do Povo Arara da Cachoeira Seca (Kowit).
Povo de recente contato, os Arara têm sofrido há anos com a violação de seus direitos e a campanha é um chamado para sensibilizar e mobilizar a sociedade civil para apoiá-los na luta pela preservação da terra indígena. Com isso, espera-se pressionar o Governo Federal para que conclua o processo de regularização fundiária da área que, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), está há seis anos no topo da lista das terras indígenas mais desmatadas do Brasil.
Embora o Governo Federal tenha determinado a homologação e demarcação da reserva de 733 mil hectares, em abril de 2016, beneficiando com posse permanente e usufruto exclusivo o povo Arara, o território indígena é alvo constante da ação criminosa de extração ilegal de madeira. E a regularização fundiária que na fase em que está prevê a retirada dos não indígenas do território, é um passo essencial para a sua preservação.
“Nosso território está sendo muito destruído e nossos direitos estão sendo violados. Estamos aqui para lutar pelos nossos direitos. Essa campanha é para mostrar para o mundo que não estamos sendo respeitados pelo governo brasileiro e outras autoridades. Estamos pedindo pela desintrusão da nossa reserva”, explica o cacique Mobu Odo Arara da aldeia Iriri da Terra Indígena Cachoeira Seca.
Segundo um levantamento fundiário da Fundação Nacional do Índio (Funai), realizado em meados do ano 2000, 1.234 famílias não indígenas já ocupavam o território dos Arara nesta época. Mas de acordo com Timbektodem Arara, presidente da Associação Kowit, 21 anos depois, com a prática recorrente de loteamento da terra índigena, o número de invasores pode ser muito maior.
“As pessoas estão loteando a terra e vendendo. Moradores antigos estão vendendo terra para novos moradores que estão chegando. Nosso território está homologado e demarcado, só que ficou na fase da desintrusão e até agora nada”, diz Timbektodem que estima haver mais de 2.300 famílias ocupando atualmente na área de modo irregular.
Diretor do Instituto Maíra, o antropólogo Daniel Lopes Faggiano que é indigenista do povo Arara, explica que a campanha tem por objetivo contribuir com a promoção da justiça ambiental e a valorização dos direitos constitucionais do povo Arara, bem como dos não indígenas de boa-fé que ocupam a reserva.
“É uma campanha que visa construir um grande pacto de paz na região, dar um basta na violência. Todos os direitos devem ser respeitados, a gente não quer que nenhum direito seja violado, nem mais, nem menos. A proposta da campanha é juntar as pessoas para o diálogo. É importante lembrar que vivemos um momento de muitos retrocessos, estamos entrando em uma Era de catástrofes ambientais, e todos nós dependemos das florestas, dos rios, da natureza. E temos que agradecer aos Guardiões do Iriri por protegerem com a própria vida desde sempre a Terra Indígena Cachoeira Seca”, comenta.
A mobilização terá início com o lançamento oficial do vídeo da campanha “Povo Arara – Guardiões do Iriri”, às 16h do dia 16/03, nas plataformas da campanha (Youtube e Facebook). Mas estão previstas ainda projeções em prédios de cidades como São Paulo e Brasília. E durante toda a campanha serão recolhidas assinaturas em uma petição civil pública que será entregue à representantes do Governo Federal e organizações de Direitos Humanos nacionais e internacionais. O objetivo é reunir 500 mil assinaturas.
Para a realização da campanha “Povo Arara – Guardiões do Iriri”, a Associação Arara Kowit conta com a parceria do Instituto Maíra e das organização No Peace Without Justice (NPWJ) – ONG belga, a Associação Interamericana de Defesa Ambiental (AIDA), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa) e Revista Xapuri.
O território indígena mais desmatado do Brasil
O povo Arara da Terra Indígena Cachoeira Seca tem um histórico de luta e resistência bastante emblemático. Impactados pela construção da Rodovia Transamazônica e pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, o grupo que se estabeleceu no final dos anos de 1980 na aldeia Iriri, à margem direita do rio de mesmo, vive em condições das mais preocupantes dentre as situações de vulnerabilidade de terras indígenas brasileiras.
É o que indica o Ministério Público Federal que afirma em nota que “a T.I. Cachoeira Seca vem sendo dilapidada, com a abertura de inúmeros ramais utilizados para extração de madeira. E a ocupação não indígena na área tem transformado significativamente o cotidiano da comunidade que vive aterrorizada.” E não à toa, já que o índice de desmatamento na T.I. tem avançado.
De acordo com o Inpe, em 2020, a T.I. Cachoeira Seca se manteve como a terra indígena mais desmatada do Brasil pelo 6º ano consecutivo. Para que se tenha uma ideia da devastação do território dos Arara, em 2018, foram desmatados 54,2 Km², seguidos por 61,3Km², em 2019, e 72,4 Km², em 2020. Ainda segundo o Inpe, entre 2008 e 2020, a TI Cachoeira Seca perdeu um total de 367,9 Km² de floresta. Devastação que corresponde a uma área maior que a cidade de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais (331,3 Km²).
Mobu Odo, cacique do povo Arara explica que ao caminhar pela mata é possível perceber que as invasões se aproximam. “Escutamos o barulho das motosserras e avistamos muitas picadas na mata. E as invasões estão cada vez mais perto da nossa aldeia”, diz.
A regularização fundiária da Terra Indígena Cachoeira Seca, foi uma das principais condicionantes para a construção da usina de Belo Monte, orientada por meio de parecer técnico pela Funai, que considerou o grupo vulnerável.
“Foi a própria Funai que, em 2010, afirmou que Belo Monte apenas seria viável se concluída a desintrusão da TI Cachoeira Seca. Destaque-se, ainda, que o conflito existente nessa localidade vem sendo utilizado pela concessionária Norte Energia como justificativa para a demora na construção da base de vigilância do plano de proteção do território, que, segundo a concessionária dependeria, de apoio da Força Nacional.”, afirma o MPF em nota que alerta ainda para o risco de genocídio do grupo Arara, “que se encontra desprotegido na localidade”.
Para o sertanista e indigenista Sydney Possuelo, que esteve na Frente de Atração Arara/Funai que em 1987 estabeleceu o primeiro contato com o grupo Arara da aldeia Iriri, último grupo de sua etnia a deixar o isolamento voluntário, a regularização fundiária é também uma reparação histórica. “O estado brasileiro promoveu, organizou e financiou o contato com o povo Arara. Portanto, o estado brasileiro é o responsável pela demarcação e segurança de sua terra.”
É importante ressaltar ainda que a reserva faz parte de um mosaico chamado Terra do Meio, no Médio Xingu, que abriga uma das mais importantes biodiversidades da Amazônia, a preservação da T.I. Cachoeira Seca representa a luta e resistência não apenas do povo Arara, mas uma luta universal.
“A cada ano que passa sem que seja feita a desintrusão da nossa terra, aumentam as queimadas, derrubadas, invasores e retirada da nossa madeira. E não queremos isso. Queremos a nossa floresta em pé, nossa terra viva, porque a terra é a nossa vida”, enfatiza ao completar Talem Arara, representante feminina da Associação Kowit.
Sobre a Associação Indígena do Povo Arara da Cachoeira Seca (Kowit)
A Associação Indígena do Povo Arara da Cachoeira Seca (Kowit) foi criada em 2017 para representar o povo Arara da aldeia Iriri da Terra Indígena Cachoeira Seca, no Pará, que desde o contato, em 1987, tem um histórico de luta e resistência. A associação recebe o nome Kowit em homenagem a um de seus guerreiros que defendeu o território, mas foi preso e morreu esquartejado. Uma forma de manter viva a memória do guardião Kowit, sem jamais esquecer os problemas e as violências do passado, o que inspira o povo Arara na construção de um mundo melhor e justo pra todos.
13/mar/2021
Publicado em 06/03/2021 – 08:00 Por Agência Brasil – Brasília
Uma história em quadrinhos (HQ) retrata, de forma pioneira, a língua indígena de sinais utilizada pelos surdos da etnia terena, anunciou nesta semana a Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Segundo a universidade, a obra, produzida por Ivan de Souza, em trabalho de conclusão do curso de licenciatura em Letras Libras, tem o propósito de fortalecer o reconhecimento e a preservação das línguas de sinais indígenas e é apresentada em formato plurilíngue, sinalizada também na Língua Brasileira de Sinais (Libras).
A UFPR lembra que comunicação por meio da língua materna é importante pois ajuda a manter viva a cultura, a identidade e a história dos povos indígenas.
Nas aldeias da etnia terena, localizadas principalmente no estado de Mato Grosso do Sul, a língua oral terena é amplamente utilizada. Os surdos dessa etnia também se comunicam com sinais diferentes dos pertencentes ao sistema linguístico utilizado pelos surdos no Brasil (Libras). Após diversas pesquisas, especialistas concluíram que esses sinais constituem um sistema autônomo, chamado língua terena de sinais.
Cultura indígena
O trabalho de conclusão do curso de licenciatura em Letras Libras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) teve início em 2017, quando o estudante pesquisava a história dos surdos no Paraná, na iniciação científica.
De acordo com a universidade, todo o processo teve acompanhamento de pesquisadoras que já desenvolviam atividades com os terena surdos, usuários da língua terena de sinais. A comunidade indígena também teve participação ativa no desenvolvimento e depois, na validação da obra junto ao seu povo.
Para a indígena Maíza Antonio, professora de educação infantil continuar pesquisando o tema é importante para que os próprios integrantes das aldeias entendam melhor os sinais utilizados por parte de seu povo.
Indígena da etnia terena, ela trabalha com a língua materna na escola da comunidade. “Nossos alunos têm optado por estudar na cidade, por não estarmos preparados para recebê-los em nossa escola. Essa história em quadrinhos servirá como material didático para trabalharmos com os alunos surdos e como incentivo para que nós, professores, busquemos novas ferramentas de ensino nessa área”, disse, em entrevista ao site da UFPR.
Sinalário
Souza e os especialistas que o auxiliaram no projeto também desenvolveram um “sinalário”, isto é, um registro em Libras dos principais conceitos apresentados na narrativa visual e um glossário plurilíngue abrangendo palavras utilizadas no dia a dia da comunidade. “Levantamos os vocabulários que mais se repetiam e organizamos em uma planilha. Depois buscamos localizar os sinais já existentes em sites e aplicativos. Filmamos os sinais e disponibilizaremos esse material no YouTube, com o objetivo de expandir o conhecimento sobre as línguas sinalizadas e de minimizar a barreira linguística”, explica.
De acordo com o autor, o trabalho tem relevância para os indígenas da comunidade terena e de outras etnias e para a sociedade em geral.
“Esse é mais um material disponível para os terena ensinarem sua história de forma acessível a ouvintes e surdos. É importante também para mostrar à sociedade como existem povos, culturas, identidades e línguas diferentes no país. E que essa diversidade precisa ser respeitada, preservada e valorizada”.
O jovem escritor tem esperança de que o trabalho possa despertar a sensibilidade para com os povos indígenas e para as demais línguas de sinais presentes no Brasil. Outro objetivo do autor é que, com o reconhecimento dessas línguas autônomas de sinais, torne-se possível que surdos indígenas tenham, de fato, o direito de serem ensinados em sua língua materna garantido, assim como apregoado na Constituição Federal. Ele pretende distribuir a HQ em escolas indígenas.
Segundo a UFPR, além de possibilitar a disseminação e a preservação da língua terena de sinais, a história tem o propósito de evidenciar a cultura e a história desse povo. O estudante cita uma das pesquisadoras que trabalhou com ele nesse projeto para definir o que pensa sobre o tema. “Cada língua reflete um modo de ver o mundo, um modo diferente de pensar. Se perdemos uma língua, perdemos possibilidades, perdemos a capacidade de criar, imaginar, pensar de um modo novo e talvez até mais adequado para uma dada situação”, indica Priscilla Alyne Sumaio Soares em sua tese de doutorado intitulada Língua Terena de Sinais. “Só podemos preservar aquilo que é registrado e esse é um dos nossos objetivos, preservar uma pequena parte da história do povo terena por meio da HQ”, afirma Souza.
A história
A obra Sol: a pajé surda ou Séno Mókere Káxe Koixómuneti, em língua terena, conta a história de uma mulher indígena surda anciã chamada Káxe que exerce a função religiosa de pajé (Koixómuneti) em sua comunidade. Ao ser procurada para auxiliar em um parto e após pedir a benção dos ancestrais para o recém-nascido, o futuro do povo terena é revelado e transmitido a ela em sinais. “A história mostra um pouco da rica cultura desse povo, as situações, consequências e resistência após o contato com o povo branco”, revela Souza.
Inspirada na história real do povo terena, a narrativa apresenta a comunidade em uma época em que ela ainda vivia nas Antilhas e era designada pelo nome Aruák.
A pajé Káxe, procurada por uma mulher em trabalho de parto, ajuda no nascimento do pequeno Ilhakuokovo.
Trajetória dos terena
A partir daí, a obra ilustra um pouco da trajetória desses indígenas e da sua instalação em território brasileiro. Buscando caminhos que levasse aos Andes, em meados do século XVI, os espanhóis estabeleceram relações com os terena, à época chamados de Guaná, na região do Chaco paraguaio. A chegada dos brancos acarretou muitas mudanças nas vidas dos indígenas, que procuraram, durante certo período, locais onde pudessem exercer seu modo de vida sem a influência da colonização.
Assim esse povo chegou ao Brasil, no século XVIII, e se instalou na região do Mato Grosso do Sul. Mesmo em outras terras, os conflitos trazidos pela colonização ainda eram um problema. A Guerra do Paraguai envolveu os terena, que foram forçados a participar para garantir seus territórios e, no conflito, perderam muitos membros de sua comunidade. Após a guerra, questões territoriais continuaram causando embates. Nesse período, os terena se viram obrigados a trabalhar nas fazendas da região, situação que ocasionou a servidão dos indígenas.
Segundo a UFPR, com informações da Comissão Pró-índio de São Paulo, algumas famílias dessa população indígena se mantiveram às margens das fazendas, ocupando pequenos núcleos familiares irredutíveis à colonização. Foram essas ocupações que, regularizadas no início de século XX, formaram as Reservas Indígenas de Cachoeirinha e Taunay/ Ipegue.
A orientadora do trabalho e coordenadora do projeto de pesquisa institucional HQs Sinalizadas, Kelly Priscilla Lóddo Cezar, destaca que trabalhar com diferentes línguas envolve conhecimentos históricos com e sem registros escritos.” É necessária uma grande entrega à pesquisa e o Ivan fez isso com louvor. Além de encantar o povo terena com a HQ, os pesquisadores participantes e colaboradores se encantaram com seu empenho e sua autonomia invejável, permeados de humildade”.
As ilustrações da HQ foram feitas por Julia Alessandra Ponnick, que é acadêmica do curso de Design Gráfico da UFPR, autora, ilustradora e roteirista de histórias em quadrinhos. A defesa do TCC de Souza está agendada para o final de março, com o lançamento oficial da história.
HQs sinalizadas
O projeto da UFPR HQs Sinalizadas trabalha com temas transversais dos artefatos da cultura surda – história, língua, cultura, saúde. O objetivo é criar, aplicar e analisar histórias em quadrinhos sinalizadas como uso de sequências didáticas bilíngues para o ensino de surdos. Além da elaboração de materiais bilíngues capazes de auxiliar na aprendizagem, a proposta permite aprofundar os estudos linguísticos como prática social.
Todas as HQs produzidas pelo grupo apresentam vídeos sinalizados, desenhos, ilustrações e escrita do português. “Essas linguagens podem ser utilizadas, especialmente, quando a proposta destina-se a contemplar os temas transversais como ética, orientação sexual, meio ambiente, saúde, pluralidade cultural, trabalho e consumo, congregando professores e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento”, sugere Kelly.
*Com informações da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Edição: Kelly Oliveira
13/mar/2021
Nós, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, lamentamos informar que ultrapassamos 1 mil óbitos indígenas por Covid-19. Desde o começo da pandemia, fomos incansáveis na luta para conter os avanços do novo coronavírus, pois não esquecemos o histórico de genocídios dos povos originários provocado por doenças trazidas pelos colonizadores. Sabíamos que enfrentar a pandemia de um vírus desconhecido seria devastador para nossos povos e, por isso, fomos à luta para a proteção dos nossos.
Em abril de 2020, já incentivando o distanciamento social como forma de prevenção, realizamos pela primeira vez o Acampamento Terra Livre (ATL) totalmente online. Demarcando as telas, nos unimos a pesquisadores e profissionais da saúde para discutir vulnerabilidade, impactos e enfrentamentos à Covid-19 no contexto indígena. Em maio, organizamos a Assembleia Nacional da Resistência Indígena, com intuito de construir um plano de ação emergencial para conter a disseminação e os impactos da pandemia. Outro resultado muito importante da assembleia foi a criação do Comitê pela Vida e Memória Indígena que, desde então, coleta e publica dados sobre o avanço do vírus.
Nos meses seguintes, enquanto liderávamos a construção do plano Emergência Indígena e a mobilização global Maracá, lutamos junto à organizações parcerias pela implementação da Lei 1142/2020 que dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19, fomos ao Supremo Tribunal Federal com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 709 exigindo a elaboração de um plano do Governo Federal que atenda as necessidades de proteção integral dos povos originários (a elaboração deste plano se arrasta por quase um ano, considerações de especialistas sobre problemas estruturais nos territórios seguem sendo ignoradas pelo governo). Finalizamos 2020 lançando o relatório “Nossa luta é pela vida”, um documento robusto que reúne informações sobre os primeiros oito meses de pandemia no contexto indígena em todo Brasil. Nele apontamos todos os vetores de disseminação, vulnerabilidades, negligências e violações dos nossos direitos.
Em 2021, com o início da imunização, o Governo usou de um critério racista para definir quem teria direito à vacina, nós também lutamos e continuamos lutando pela vacinação universal. Criamos a campanha “Vacina, parente!” para pressionar o poder público a garantir imunização de todo e qualquer indígena em território brasileiro – independente de onde esteja, para combater a desinformação sobre vacinas, para denunciar casos de violações e negligência na implementação do plano de imunização com os povos indígenas como grupo prioritário.
Completamos um ano de pandemia com nossos esforços voltados, principalmente, para o enfrentamento da Covid-19. Seja nas barreiras sanitárias nas aldeias, seja nas instâncias de poder do país, nós não paramos, nós não esperamos, nós não nos conformamos com nenhuma vida indígena perdida para o vírus. Hoje, é com imenso pesar e buscando forças na nossa ancestralidade, que comunicamos que apesar de todas as nossas lutas, chegamos à marca de mil vidas interrompidas. Interrompidas pela doença, sim, mas também pelo descaso, pela violência, pelo genocídio orquestrado por quem deveria prezar pela garantir do nosso direito de viver.
Por cada uma das 1.001 vidas indígenas que ancestralizaram, por cada parente que continua na luta contra esse vírus: seguimos.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib
12 de março de 2021
12/mar/2021
Foto: (Valter Campanato / Agência Brasil.)
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) apresentou informações ao Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito de três medidas cautelares concedidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no contexto da pandemia de Covid-19, em favor dos povos indígenas Yanomami, Ye’kwana, Munduruku, Guajajara e Awá e ,também, sobre a recente escalada de conflitos na Terra Indígena (TI) Yanomami em razão da invasão garimpeira nesta terra.
A manifestação se deu no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 709, na qual o STF determinou ao governo federal, em 2020, a adoção de medidas para conter o avanço da pandemia nos territórios indígenas. Ocorre que a ADPF 709 vem se estendendo por ineficiência e falta de vontade política do Governo Federal em garantir a devida proteção dos povos originários durante a crise sanitária.
Os proponentes dessa ação, dentre os quais figuram a APIB e diversos partidos políticos, já haviam nela mencionado os povos acima referidos ao tratarem da urgência sanitária da retirada de invasores não indígenas de suas terras, devido ao desmatamento, à Covid-19 e ao genocídio.
No mesmo sentido, os solicitantes dos três pedidos de cautelares perante à CIDH expuseram: i) a especial situação de risco face à pandemia de COVID-19, considerando sua particular suscetibilidade a doenças respiratórias e o rápido crescimento de contágios no seu território; ii) as falhas no sistema de saúde para a população indígena, agudizadas pela pandemia; e iii) a presença de terceiros não autorizados em suas terras, fomentando o fluxo do vírus.
A Comissão Interamericana é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA). Seu mandato surge a partir da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ambos tratados ratificados pelo Brasil, a qual tem como objetivo promover a observância e defesa dos direitos humanos na região, bem como atuar como órgão consultivo da OEA na temática.
Em casos de gravidade e urgência, sempre que necessário e de acordo com as informações disponíveis, como nesses apresentados, a Comissão pode requerer ao Estado em questão a adoção de medidas cautelares para evitar danos irreparáveis, conforme previsto no artigo 25 de seu Regulamento.
Diante dessas atribuições, em 17 de julho de 2020 a CIDH emitiu a Resolução 35/2020, outorgando medidas cautelares de proteção a favor dos membros dos povos indígenas Yanomami e Ye’kwana. Já em 11 de dezembro de 2020, a CIDH adotou sua Resolução 94/2020, por intermédio da qual outorgou medidas cautelares a favor dos membros do Povo Indígena Munduruku. Por fim, em 4 de janeiro de 2021, a CIDH emitiu a Resolução 1/2021, por meio da qual concedeu medidas cautelares em favor dos membros dos Povos Indígenas Guajajara e Awá da Terra indígena Araribóia.
Em todos os casos, a Comissão considerou que as informações prévias apresentadas pelo Estado brasileiro eram generalistas, pelo que não permitiram verificar sua real efetividade para a proteção de tais povos. Também foi solicitado ao Brasil que:
- a) adote as medidas necessárias para proteger os direitos à saúde, à vida e à integridade pessoal dos membros desses povos, implementando, sob uma perspectiva culturalmente adequada, medidas de prevenção contra a disseminação da COVID-19, além de fornecer assistência médica adequada em condições de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, de acordo com os parâmetros internacionais aplicáveis;
- b) acorde as medidas a serem adotadas com as pessoas beneficiárias e seus representantes; e
- c) relate as ações adotadas para investigar os fatos que levaram à adoção dessa medida cautelar e, assim, evitar sua repetição.
O objetivo da APIB em levar estes casos ao STF é deixar a Corte ciente da preocupação externada pela CIDH, órgão especializado na proteção dos direitos humanos no entrecho interamericano.
Reforça-se, assim, a necessidade de urgente elaboração de um plano eficaz para a contenção da propagação da Covid-19 em territórios indígenas, agravada pela presença massiva de invasores ilegais, cuja retirada imediata dessas terras se faz indispensável.
Como mencionado, tais urgências já foram reconhecidas pelo STF. No entanto, até agora nada foi feito para remediá-las, devido à incapacidade do Governo Federal em apresentar um plano eficaz para o enfrentamento e monitoramento da Covid-19 entre os povos indígenas brasileiros. Após quase um ano, o Planalto já levou ao STF quatro propostas de plano de combate, todas ignoraram considerações de especialistas sobre problemas estruturais nos territórios.
Especificamente quanto à TI Yanomami, houve adensamento do número de invasores, gerando as possibilidades de iminente conflito com os indígenas. Recentemente, a Hutukara Associação Yanomami, relatou um grave conflito entre garimpeiros, que invadiram a comunidade indígena de Helepi, na noite do 25 de fevereiro. Diante desse cenário, a associação pede urgência na atuação dos órgãos de segurança pública para investigar o ocorrido e proteger a comunidade.