Após dois anos de julgamento e muitas mobilizações do movimento indígena, no dia 27 de setembro, o Supremo Tribunal Federal chegou a uma decisão sobre a tese do marco temporal. Além de definir a favor da tese do indigenato, que mantém o direito originário e afasta a ideia de limitar as demarcações de terras à data da promulgação da constituição de federal de 1988, foram definidas 13 condicionantes para decisões judiciais. Algumas propostas levantadas pelos ministros Moraes e Toffoli, no que se refere à indenização prévia para invasores de Terras Indígenas e o aproveitamento de recursos em TIs, foram acatadas. A seguir indicamos quais foram essas decisões e o que elas significam para os povos indígenas.

I – A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena

O primeiro tópico da tese fixada pelo Tribunal reforça o disposto no art. 231, da Constituição Federal: os direitos indígenas sobre suas terras tradicionais são originários, ou seja, preexistentes ao próprio Estado brasileiro. Deste modo, ao final do processo administrativo de demarcação, o Estado não constitui um direito territorial, mas reconhece seu direito congênito à posse e ao usufruto exclusivo daquela terra tradicionalmente ocupada por um povo e seus antepassados.

II – A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, nas utilizadas para suas atividades produtivas, nas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e nas necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do § 1º do artigo 231 do texto constitucional

Novamente, os Ministros revisitam a letra da Constituição Federal e confirmam o sentido dado ao art. 231 pela Constituinte. Este tópico, proposto inicialmente pelo Ministro Edson Fachin, relator do RE 1.017.365, diferencia corretamente a posse tradicional indígena da posse civil. 

A primeira consiste na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. A terra tradicional é o substrato para o reconhecimento e a constituição dos demais direitos e da própria identidade dos povos indígenas, estando sua função econômica atrelada a estes aspectos e não a seu potencial valor comercial. Já a posse civilista é uma das manifestações da propriedade, caracterizada pela destinação econômica que o possuidor dá a determinado bem, sem que haja entre eles, necessariamente, uma relação tradicional, de ordem espiritual ou cultural.

III – A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição

Este tópico rejeita explicitamente a tese do Marco Temporal, que havia sido gestada sem qualquer lastro nos mandamentos constitucionais. Dado que o Recurso Extraordinário em julgamento tem repercussão geral, esta decisão se estenderá para todas as esferas do Poder Judiciário e do Poder Executivo, tornando nulos os atos que limitem a demarcação de terras indígenas com base na inconstitucional tese do Marco Temporal. 

IV – Existindo ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição Federal, aplica-se o regime indenizatório relativo às benfeitorias úteis e necessárias, previsto no § 6º do art. 231 da CF/88 

O regime indenizatório invocado por este tópico da tese encontra-se previsto no texto constitucional. O elemento novo inserido pelo julgamento é a necessidade de renitente esbulho para que este regime seja aplicado a terras em que não se verifique a ocupação indígena na data da promulgação da Constituição Federal. Esta determinação não figura no citado §6º do art. 231, CF/88, que não divide as terras indígenas em categorias a depender de sua ocupação na referida data. Na prática, este tópico institui um marco temporal para a aplicação do regime indenizatório constitucional aos territórios tradicionais indígenas.

V – Ausente ocupação tradicional indígena ao tempo da promulgação da Constituição Federal ou renitente esbulho na data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis, pela União; e, quando inviável o reassentamento dos particulares, caberá a eles indenização pela União (com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área) correspondente ao valor da terra nua, paga em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido o direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso, permitidos a autocomposição e o regime do § 6º do art. 37 da CF 

Este item traz uma das previsões mais controversas da tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal. Isto porque institui o direito à indenização prévia a particulares não indígena por benfeitorias necessárias e úteis e pela terra nua, com direito a retenção até que o ente federativo pague o valor incontroverso. Ou seja, a Corte transpõe o instituto da desapropriação para o processo demarcatório de terras indígenas, mesmo estas sendo regidas por um regime constitucional e não civil. A demarcação das terras que não estavam ocupadas por indígenas ou judicializadas em 05 de outubro de 1988 passa, portanto, a depender da desapropriação de particulares não indígenas. 

A busca por indenização deverá ser feita fora do procedimento de demarcação, o que pode ser favorável já que não condiciona a finalização deste procedimento ao pagamento dos valores devidos. No entanto, a indenização por terra nua premia os invasores e onera o Estado, que, antes mesmo de enfrentar o desafio imposto por este novo regime indenizatório, já alega não ter orçamento suficiente para garantir a demarcação territorial.  

VI – Descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados e em andamento

Este item da tese garante que os novos regimes indenizatórios estabelecidos não retroagem sobre terras indígenas demarcadas. Desta forma, o Tribunal garantiu a segurança jurídica destes territórios e para seus povos, impedindo que eventuais invasores possam pleitear indenização referente a terras já reconhecidas e declaradas. 

VII – É dever da União efetivar o procedimento demarcatório das terras indígenas, sendo admitida a formação de áreas reservadas somente diante da absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação, devendo ser ouvida, em todo caso, a comunidade indígena, buscando-se, se necessário, a autocomposição entre os respectivos entes federativos para a identificação das terras necessárias à formação das áreas reservadas, tendo sempre em vista a busca do interesse público e a paz social, bem como a proporcional compensação às comunidades indígenas (art. 16.4 da Convenção 169 OIT)

Este tópico, também lastreado no art. 231 da Constituição Federal, garante a tradicionalidade das terras indígenas, limitando as circunstâncias em que o Estado pode, alternativamente, reservar terras que não sejam as tradicionalmente ocupadas por um povo. Diante da absoluta impossibilidade de demarcação da terra com a qual um povo indígena guarda relações culturais e espirituais, é possível que seja reservada outra área, como já previsto na legislação, desde que a comunidade seja consultada e participe do processo de escolha do local a ser reservado. O Estado, independentemente dos desafios apresentados, não pode se omitir na efetivação dos direitos territoriais indígenas.

VIII – A instauração de procedimento de redimensionamento de terra indígena não é vedada em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de pedido de revisão do procedimento demarcatório apresentado até o prazo de cinco anos da demarcação anterior, sendo necessário comprovar grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da terra indígena, ressalvadas as ações judiciais em curso e os pedidos de revisão já instaurados até a data de conclusão deste julgamento

Pedidos de aumento ou diminuição de terras indígenas só poderão ser feitos em caso comprovados de grave e incontornável erro no processo demarcatório ou na delimitação da terra indígena. Além disso, o redimensionamento deverá ser pleiteado no prazo de cinco anos, contados a partir da homologação da demarcação ou do fim do julgamento que fixou esta tese. Este último ponto pode vir a se chocar com o tópico XI, que, em consonância com o texto constitucional, garante a imprescritibilidade do direito originário à terra de ocupação tradicional.  

IX – O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.775/1996 é um dos elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições, na forma do instrumento normativo citado

Os estudos antropológicos são instrumentos essenciais para a devida localização, delimitação e definição de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. O laudo técnico, como rememora o tópico, já é previsto pelo decreto que rege o procedimento demarcatório de terras indígenas e sua importância foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. No entanto, a tese fala em “um dos elementos fundamentais” para tal identificação, o que pode abrir discussões sobre outros elementos a serem considerados para a demonstração da tradicionalidade de uma área.

X – As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes

Confirmando os direitos originários à posse permanente  e ao usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais, este tópico reproduz quase literalmente o §2º do art. 231, CF/88. Sua presença na tese fixada afasta a possibilidade, por exemplo, de flexibilização das regras sobre a exploração econômica de terras indígenas com base no resultado deste julgamento – o que foi cogitado pelo Ministro Dias Toffoli, que, em seu voto, inseriu a infrutífera discussão sobre mineração em territórios tradicionais. 

XI – As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis

A Constituição Federal prevê que as terras indígenas são propriedade da União, de posse permanente e usufruto exclusivo dos povos indígenas. Apesar de serem terras públicas, a União não pode vendê-las, dado que os povos indígenas têm direitos originários sobre essas áreas. Tampouco podem os indígenas se desfazerem de terra que lhes foi reconhecida pelo Estado como de ocupação tradicional. Ainda, a comunidade interessada pode demandar ao Poder Público o reconhecimento de seu direito originário sobre a terra que tradicionalmente ocupa a qualquer tempo, não havendo prazo para que essa reivindicação seja feita. 

XII – A ocupação tradicional das terras indígenas é compatível com a tutela constitucional do meio ambiente, sendo assegurado o exercício das atividades tradicionais dos povos indígenas 

O Tribunal reconheceu que os modos de vida tradicionais indígenas são inteiramente compatíveis com o meio ambiente, não representando qualquer risco para a proteção ambiental. O Meio Ambiente equilibrado é, na verdade, prerrogativa para o desenvolvimento das atividades de caça, pesca, cultivo, além das espirituais e culturais das comunidades indígenas. Não há, portanto,  incompatibilidade entre os artigos 231 e 225 do texto constitucional.

Como acentuado no último trecho do tópico, é assegurado aos povos indígenas o exercício de suas atividades tradicionais, não sendo autorizada a interferência de políticas ambientais sobre ações não predatórias que constituem o núcleo da tradicionalidade da ocupação indígena. 

XIII – Os povos indígenas possuem capacidade civil e postulatória, sendo partes legítimas nos processos em que discutidos seus interesses, sem prejuízo, nos termos da lei, da legitimidade concorrente da FUNAI e da intervenção do Ministério Público como fiscal da lei

O último tópico da tese fixada pela Corte, derivado das disposições do art. 232, da Constituição Federal, busca sanar eventuais questionamentos em instâncias inferiores sobre a legitimidade da figuração de povos indígenas como partes em processos que discutem seus direitos e, com isso, garantir o acesso à justiça a essa população. Apesar de a FUNAI e o Ministério Público Federal também terem funções asseguradas nestes processos, os povos indígenas são reconhecidamente legitimados a estarem em juízo na defesa de seus interesses.