Entenda o que mudou com a decisão do STF sobre o marco temporal

Entenda o que mudou com a decisão do STF sobre o marco temporal

Após dois anos de julgamento e muitas mobilizações do movimento indígena, no dia 27 de setembro, o Supremo Tribunal Federal chegou a uma decisão sobre a tese do marco temporal. Além de definir a favor da tese do indigenato, que mantém o direito originário e afasta a ideia de limitar as demarcações de terras à data da promulgação da constituição de federal de 1988, foram definidas 13 condicionantes para decisões judiciais. Algumas propostas levantadas pelos ministros Moraes e Toffoli, no que se refere à indenização prévia para invasores de Terras Indígenas e o aproveitamento de recursos em TIs, foram acatadas. A seguir indicamos quais foram essas decisões e o que elas significam para os povos indígenas.

I – A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena

O primeiro tópico da tese fixada pelo Tribunal reforça o disposto no art. 231, da Constituição Federal: os direitos indígenas sobre suas terras tradicionais são originários, ou seja, preexistentes ao próprio Estado brasileiro. Deste modo, ao final do processo administrativo de demarcação, o Estado não constitui um direito territorial, mas reconhece seu direito congênito à posse e ao usufruto exclusivo daquela terra tradicionalmente ocupada por um povo e seus antepassados.

II – A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, nas utilizadas para suas atividades produtivas, nas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e nas necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do § 1º do artigo 231 do texto constitucional

Novamente, os Ministros revisitam a letra da Constituição Federal e confirmam o sentido dado ao art. 231 pela Constituinte. Este tópico, proposto inicialmente pelo Ministro Edson Fachin, relator do RE 1.017.365, diferencia corretamente a posse tradicional indígena da posse civil. 

A primeira consiste na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. A terra tradicional é o substrato para o reconhecimento e a constituição dos demais direitos e da própria identidade dos povos indígenas, estando sua função econômica atrelada a estes aspectos e não a seu potencial valor comercial. Já a posse civilista é uma das manifestações da propriedade, caracterizada pela destinação econômica que o possuidor dá a determinado bem, sem que haja entre eles, necessariamente, uma relação tradicional, de ordem espiritual ou cultural.

III – A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição

Este tópico rejeita explicitamente a tese do Marco Temporal, que havia sido gestada sem qualquer lastro nos mandamentos constitucionais. Dado que o Recurso Extraordinário em julgamento tem repercussão geral, esta decisão se estenderá para todas as esferas do Poder Judiciário e do Poder Executivo, tornando nulos os atos que limitem a demarcação de terras indígenas com base na inconstitucional tese do Marco Temporal. 

IV – Existindo ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição Federal, aplica-se o regime indenizatório relativo às benfeitorias úteis e necessárias, previsto no § 6º do art. 231 da CF/88 

O regime indenizatório invocado por este tópico da tese encontra-se previsto no texto constitucional. O elemento novo inserido pelo julgamento é a necessidade de renitente esbulho para que este regime seja aplicado a terras em que não se verifique a ocupação indígena na data da promulgação da Constituição Federal. Esta determinação não figura no citado §6º do art. 231, CF/88, que não divide as terras indígenas em categorias a depender de sua ocupação na referida data. Na prática, este tópico institui um marco temporal para a aplicação do regime indenizatório constitucional aos territórios tradicionais indígenas.

V – Ausente ocupação tradicional indígena ao tempo da promulgação da Constituição Federal ou renitente esbulho na data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis, pela União; e, quando inviável o reassentamento dos particulares, caberá a eles indenização pela União (com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área) correspondente ao valor da terra nua, paga em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido o direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso, permitidos a autocomposição e o regime do § 6º do art. 37 da CF 

Este item traz uma das previsões mais controversas da tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal. Isto porque institui o direito à indenização prévia a particulares não indígena por benfeitorias necessárias e úteis e pela terra nua, com direito a retenção até que o ente federativo pague o valor incontroverso. Ou seja, a Corte transpõe o instituto da desapropriação para o processo demarcatório de terras indígenas, mesmo estas sendo regidas por um regime constitucional e não civil. A demarcação das terras que não estavam ocupadas por indígenas ou judicializadas em 05 de outubro de 1988 passa, portanto, a depender da desapropriação de particulares não indígenas. 

A busca por indenização deverá ser feita fora do procedimento de demarcação, o que pode ser favorável já que não condiciona a finalização deste procedimento ao pagamento dos valores devidos. No entanto, a indenização por terra nua premia os invasores e onera o Estado, que, antes mesmo de enfrentar o desafio imposto por este novo regime indenizatório, já alega não ter orçamento suficiente para garantir a demarcação territorial.  

VI – Descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados e em andamento

Este item da tese garante que os novos regimes indenizatórios estabelecidos não retroagem sobre terras indígenas demarcadas. Desta forma, o Tribunal garantiu a segurança jurídica destes territórios e para seus povos, impedindo que eventuais invasores possam pleitear indenização referente a terras já reconhecidas e declaradas. 

VII – É dever da União efetivar o procedimento demarcatório das terras indígenas, sendo admitida a formação de áreas reservadas somente diante da absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação, devendo ser ouvida, em todo caso, a comunidade indígena, buscando-se, se necessário, a autocomposição entre os respectivos entes federativos para a identificação das terras necessárias à formação das áreas reservadas, tendo sempre em vista a busca do interesse público e a paz social, bem como a proporcional compensação às comunidades indígenas (art. 16.4 da Convenção 169 OIT)

Este tópico, também lastreado no art. 231 da Constituição Federal, garante a tradicionalidade das terras indígenas, limitando as circunstâncias em que o Estado pode, alternativamente, reservar terras que não sejam as tradicionalmente ocupadas por um povo. Diante da absoluta impossibilidade de demarcação da terra com a qual um povo indígena guarda relações culturais e espirituais, é possível que seja reservada outra área, como já previsto na legislação, desde que a comunidade seja consultada e participe do processo de escolha do local a ser reservado. O Estado, independentemente dos desafios apresentados, não pode se omitir na efetivação dos direitos territoriais indígenas.

VIII – A instauração de procedimento de redimensionamento de terra indígena não é vedada em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de pedido de revisão do procedimento demarcatório apresentado até o prazo de cinco anos da demarcação anterior, sendo necessário comprovar grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da terra indígena, ressalvadas as ações judiciais em curso e os pedidos de revisão já instaurados até a data de conclusão deste julgamento

Pedidos de aumento ou diminuição de terras indígenas só poderão ser feitos em caso comprovados de grave e incontornável erro no processo demarcatório ou na delimitação da terra indígena. Além disso, o redimensionamento deverá ser pleiteado no prazo de cinco anos, contados a partir da homologação da demarcação ou do fim do julgamento que fixou esta tese. Este último ponto pode vir a se chocar com o tópico XI, que, em consonância com o texto constitucional, garante a imprescritibilidade do direito originário à terra de ocupação tradicional.  

IX – O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.775/1996 é um dos elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições, na forma do instrumento normativo citado

Os estudos antropológicos são instrumentos essenciais para a devida localização, delimitação e definição de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. O laudo técnico, como rememora o tópico, já é previsto pelo decreto que rege o procedimento demarcatório de terras indígenas e sua importância foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. No entanto, a tese fala em “um dos elementos fundamentais” para tal identificação, o que pode abrir discussões sobre outros elementos a serem considerados para a demonstração da tradicionalidade de uma área.

X – As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes

Confirmando os direitos originários à posse permanente  e ao usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais, este tópico reproduz quase literalmente o §2º do art. 231, CF/88. Sua presença na tese fixada afasta a possibilidade, por exemplo, de flexibilização das regras sobre a exploração econômica de terras indígenas com base no resultado deste julgamento – o que foi cogitado pelo Ministro Dias Toffoli, que, em seu voto, inseriu a infrutífera discussão sobre mineração em territórios tradicionais. 

XI – As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis

A Constituição Federal prevê que as terras indígenas são propriedade da União, de posse permanente e usufruto exclusivo dos povos indígenas. Apesar de serem terras públicas, a União não pode vendê-las, dado que os povos indígenas têm direitos originários sobre essas áreas. Tampouco podem os indígenas se desfazerem de terra que lhes foi reconhecida pelo Estado como de ocupação tradicional. Ainda, a comunidade interessada pode demandar ao Poder Público o reconhecimento de seu direito originário sobre a terra que tradicionalmente ocupa a qualquer tempo, não havendo prazo para que essa reivindicação seja feita. 

XII – A ocupação tradicional das terras indígenas é compatível com a tutela constitucional do meio ambiente, sendo assegurado o exercício das atividades tradicionais dos povos indígenas 

O Tribunal reconheceu que os modos de vida tradicionais indígenas são inteiramente compatíveis com o meio ambiente, não representando qualquer risco para a proteção ambiental. O Meio Ambiente equilibrado é, na verdade, prerrogativa para o desenvolvimento das atividades de caça, pesca, cultivo, além das espirituais e culturais das comunidades indígenas. Não há, portanto,  incompatibilidade entre os artigos 231 e 225 do texto constitucional.

Como acentuado no último trecho do tópico, é assegurado aos povos indígenas o exercício de suas atividades tradicionais, não sendo autorizada a interferência de políticas ambientais sobre ações não predatórias que constituem o núcleo da tradicionalidade da ocupação indígena. 

XIII – Os povos indígenas possuem capacidade civil e postulatória, sendo partes legítimas nos processos em que discutidos seus interesses, sem prejuízo, nos termos da lei, da legitimidade concorrente da FUNAI e da intervenção do Ministério Público como fiscal da lei

O último tópico da tese fixada pela Corte, derivado das disposições do art. 232, da Constituição Federal, busca sanar eventuais questionamentos em instâncias inferiores sobre a legitimidade da figuração de povos indígenas como partes em processos que discutem seus direitos e, com isso, garantir o acesso à justiça a essa população. Apesar de a FUNAI e o Ministério Público Federal também terem funções asseguradas nestes processos, os povos indígenas são reconhecidamente legitimados a estarem em juízo na defesa de seus interesses.

Apib e Apoinme enviam nova manifestação à CIDH sobre a violência contra o Povo Pataxó

Apib e Apoinme enviam nova manifestação à CIDH sobre a violência contra o Povo Pataxó

O povo Pataxó continua ameaçado pela violência nos territórios indígenas de Barra Velha e Comexatibá, localizadas no extremo-sul baiano. As medidas tomadas pelo Estado, como a criação de um gabinete de crise pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e o envio de uma brigada militar pelo governo da Bahia se mostraram ineficientes. Diante da situação crítica, o departamento jurídico da Apib reforçou as denúncias feitas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), relatando novos casos de ataque no território.

A nova manifestação destaca que, apesar da resolução 25/2023 da CIDH, que concedia uma medida cautelar, solicitando que o Estado brasileiro adotasse as medidas necessárias para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros do povo indígena Pataxó, a escalada de violência continua. A CIDH constatou que os indígenas destas áreas estão em “grave e urgente risco de dano irreparável aos seus direitos”.

Leia o relatório completo aqui.


Novos ataques

No dia 30/09, cerca de 100 homens, vestidos de preto e armados, participaram do ataque na entrada da Aldeia Gitai. Os criminosos buscavam líderes da comunidade, alegando represália à suposta colaboração deles na contenção do tráfico local. As informações iniciais indicam que não houve registro de feridos. Uma vez que não encontraram as lideranças, os criminosos abriram fogo contra as residências dos líderes e os habitantes da aldeia, causando danos materiais, incinerando carros e motocicletas e disseminando o pânico entre a população.

O Cacique Suruí já havia relatado as ameaças que vinha sofrendo. Sua residência foi o alvo principal. O ataque foi realizado após a Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA) realizar a audiência pública que tratou do tema “Violação de Direitos dos Povos Indígenas no Estado da Bahia”.

Os depoimentos locais atribuem o ataque a uma quadrilha suspeita de liderar o tráfico de drogas na região, que se estabeleceu na aldeia Xandó, vizinha a Caraíva, através da invasão por pessoas não indígenas. Há uma escancarada corretagem ilegal de terrenos, que incluem áreas de demarcação indígena na região. Devido à investida dos criminosos em busca de controle sobre a área indígena, a violência na região aumentou consideravelmente.

Já a Terra Indígena Comexatibá é atualmente o local com maior quantidade de contestações administrativas no seu processo de demarcação (mais de 150). Logo, esta situação de conflituosidade está associada tanto com a morosidade do poder público em garantir efetivamente a demarcação quanto com a violência. No dia da conclusão do julgamento da tese do Marco Temporal pelo STF (27/09), quando também ocorreu a aprovação do PL 2903 no Senado, houve a ocorrência de focos de incêndio na Terra Indígena Comexatibá. De acordo com o relato de uma liderança, há indícios de atuação criminosa , conforme se vê:

“[…] Este incêndio, é o quarto foco registrado, somente no dia de hoje, no entorno da vila de Cumuruxatiba. Segundo informaram agentes da “Brigada anti-incêndio” do PND/ICMBio, nos grupos de whatsapp da comunidade, de onde operam e moram. Este último que se alastra com os fortes ventos e a alta temperatura, está acontecendo entre a aldeia Kaí e o rio do Peixe. Além de ameaçar avançar sobre as moradias nos arredores, há outros focos. Que, avançam em direção ao Parque Nacional do Descobrimento, às reservas de Mata Atlântica e às aldeias sobrepostas. A gravidade da situação, além dos prejuízos gerados, está no que aparenta ser fruto de uma ação criminosa. Ou uma terrível coincidência, diante da simultaneidade do mesmo dia, em locais de uma mesma área, distrito e Terra Indígena. Gravidade que se multiplica quando concluímos que todos os focos de incêndio ocorreram no território Pataxó, a TI Comexatibá. [….]”

Histórico do conflito

Há anos, o povo Pataxó aguarda pela conclusão da demarcação das duas terras. Em junho de 2022, como forma de proteger seu território e resistir à pressão do agronegócio, do setor hoteleiro e da especulação imobiliária, os Pataxó deram início a um processo de autodemarcação. Desde então, têm sofrido com uma violência intensa, contínua e desproporcional, sendo alvo de ameaças, cercos armados, tiroteios, difamação e campanhas de desinformação.

Entre setembro de 2022 e janeiro de 2023, três jovens Pataxó foram vítimas do conflito na região. Gustavo Silva da Conceição, de apenas 14 anos, foi assassinado com um tiro nas costas durante um ataque de pistoleiros em setembro, na TI Comexatibá. Em outubro, o corpo do Pataxó Carlone Gonçalves da Silva, de 26 anos, foi encontrado, depois dele ter desaparecido na TI Barra Velha. Em janeiro, Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e o adolescente Nauí Brito de Jesus, de 16 anos, foram perseguidos e executados por pistoleiros numa estrada próxima a uma retomada realizada pelos Pataxó na TI Barra Velha do Monte Pascoal. As investigações mostram que os crimes contaram com a participação de policiais.

Em 20 de janeiro, foi criado um Gabinete de Crise com a finalidade de acompanhar as situações de conflitos relacionadas aos Pataxó região da Bahia. O objetivo primordial do Gabinete era pensar em respostas rápidas e ações sobre os conflitos que estão acontecendo com as comunidades Pataxós.

Porém, as medidas de enfrentamento vão para além da competência e atribuição do Ministério, motivo pelo qual a Apib qualifica a atuação do gabinete de crise como ineficiente. Tal descaso na construção da resposta por parte do Estado é de extrema preocupação, pois sinaliza, inclusive, a falta de articulação interinstitucional do governo brasileiro para responder satisfatoriamente às demandas formuladas pela CIDH para proteção do povo.

Demarcação

Na semana em que o Congresso aprovou o PL 2903, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, enviou ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, dez novas terras indígenas que estão prontas para ter andamento no processo de demarcação, dentre as quais figura a TI Barra Velha do Monte Pascoal.

A solicitação é de que seja feita a portaria declaratória, cuja competência é da pasta de Dino, e também que se dê prosseguimento com a homologação, fase final, sob responsabilidade da Presidência. Este é o segundo aceno do Ministério dos Povos Indígenas de que a portaria declaratória deste território será assinada ainda neste ano, no entanto, até que seu processo demarcatório seja concluído, as consequências desta insegurança ainda serão sentidas pelas comunidades Pataxó e por todos os habitantes dali.

De Ratinho à invasor, saiba como Carlos Roberto Massa se tornou milionário

De Ratinho à invasor, saiba como Carlos Roberto Massa se tornou milionário

*Dados do relatório “Os invasores | Parte II – Os políticos”, De Olho nos Ruralistas

Carlos Roberto Massa, o famoso apresentador Ratinho, que já usou seu espaço na TV para sugerir “fuzilamento de denunciados” e “limpar mendigos” das cidades, promove despejos há mais de dezoito anos.

Ele é dono de quase 200 mil hectares de terras em Tarauacá, no Acre, onde pretende explorar madeira. Seu império do agronegócio soma 19 fazendas, além de empresas em vários setores, como emissoras de rádio e TV, marcas de tintas, ração, café e cerveja. Atualmente, a fortuna do apresentador Ratinho, está avaliada em R$ 530 milhões.

Seu filho, Ratinho Junior (PSD), foi eleito governador do Paraná surfando na onda bolsonarista em 2018, mas já defendia seus interesses pessoais na política desde 2002. Com a campanha financiada pelas empresas do pai, se tornou deputado estadual, o mais votado do partido naquele ano. Ele, o pai e os irmãos têm um histórico de conflitos contra comunidades indígenas.

Duas das fazendas da família ficam no Acre, no município de Tarauacá, território de conflito histórico com o povo Huni Kui. Em 2002, Ratinho comprou glebas da Companhia Paranaense de Colonização Agropecuária e Industrial do Acre (Paranacre), empresa acusada de ser a principal grileira da região.

A gleba está registrada em nome da Agropecuária RGM, uma sociedade entre o apresentador e os outros dois filhos. As terras de Ratinho invadem, em seus limites, a TI Kaxinawá da Praia do Carapanã, regularizada desde 2001.

O imóvel é vizinho da TI Rio Gregório, que abriga sete aldeias dos povos Yawanawá, Kaxinawá/Huni Kui e Katukina-Pano.

Na região, Ratinho possui um histórico de conflitos contra as comunidades indígenas locais — em especial os Yawanawá —, que resistem contra o interesse do apresentador de estabelecer um grande projeto de exploração de madeira na Amazônia.

Pai e filho fizeram de tudo para contribuir na campanha presidencial de Jair Bolsonaro. Ratinho Junior já foi alvo de notícia-crime por se utilizar dos sistemas de comunicação de órgãos públicos para disparar mensagens de apoio a Bolsonaro.

A família Ratinho não criou conflitos apenas com povos indígenas da Amazônia. No ano passado, o governador prometeu fornecer cestas básicas para comunidades originárias do oeste do Paraná, região com a maior incidência de conflitos no estado, mas as cestas básicas nunca chegaram.

Aliados políticos de Ratinho também são invasores de terras indígenas. O empresário Celso Frare possui fazendas incidentes em duas terras indígenas dos povos Guarani Nhandeva e Guarani Kaiowá. Já os herdeiros do ex-deputado José Carlos Martinez, que morreu em um acidente aéreo em 2003, controlam a propriedade que invade parte da TI Sararé, do povo Nambikwara.

O Governador Ratinho Júnior (PSD) é invasor de terras indígenas.

Indenizar fazendeiros invasores vai custar mais de 1 bilhão e pode tornar demarcações inviáveis

Indenizar fazendeiros invasores vai custar mais de 1 bilhão e pode tornar demarcações inviáveis

A proposta de indenização sobre a terra nua pode bloquear as demarcações por falta de orçamento nos governos, além de ser um prêmio a grileiros invasores de terra indígena

A vitória da força do movimento indígena marcou esta quarta-feira, 21/09. No dia da árvore, o Supremo Tribunal Federal compreendeu as reivindicações dos povos originários do Brasil e derrubou o marco temporal, com nove votos contrários e dois favoráveis à tese. No entanto, durante o debate as teorias apresentadas pelos ministros deixaram diversas questões pendentes. Elas serão abordadas pela suprema corte nesta semana. Entre elas, a que mais preocupa a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil é a questão da indenização prévia sobre a “terra nua”, apresentada inicialmente pelo ministro Alexandre de Moraes e posteriormente pelo ministro Cristiano Zanin.
Segundo os juristas, pessoas que tenham tomado posse de terras indígenas de “boa fé” teriam o direito a indenizações sobre a terra que ocupam. A lei atual já prevê a indenização pelas benfeitorias e o reassentamento de pequenos agricultores, através do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

As teses de Moraes e Zanin, no entanto, abrangem desde a agricultura familiar, até fazendeiros. E a soma das quantias para garantir as demarcações pendentes na FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), com a indenização sobre a terra, pode ultrapassar R$1 bilhão de reais. Um orçamento 46% maior do que a cifra atual do órgão.

De acordo com a pesquisa realizada pela Agência Pública as dez áreas com mais hectares sob posse de fazendeiros e contestação judicial, registradas pelo Sigef (Sistema de Gestão Fundiária) do INCRA se localizam nos estados de Pará/Mato Grosso, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco e Paraná e somam 544 mil hectares. São 55% do total de terras reivindicadas por povos indígenas, que atingem a quantia de R$942 milhões de reais, caso a indenização seja paga.

O cálculo desse preço leva em conta a chamada terra nua, ou seja, a área da fazenda em hectares, de acordo com cada localização e a base de cálculo da Pauta de Valores de Terra Nua do Incra. Ainda não está claro na discussão do STF, quais proprietários teriam direito a essa indenização ou quantos deles seriam beneficiados, por isso, este cálculo leva em conta todas as sobreposições nas TIs. Este orçamento está R$200 milhões acima do previsto no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) do governo Lula para a Funai em 2024.

Teses de indenização sobre a terra nua

Há duas propostas de indenização sobre a terra no STF. A proposta feita por Alexandre de Moraes no dia 7 de junho, apareceu infiltrada em seu discurso contrário ao marco temporal. Uma forma de amenizar os ânimos do agronegócio com um “caminho do meio”. Para ele, os proprietários de imóveis em terras indígenas poderiam receber “indenização prévia” à demarcação dos territórios pelas benfeitorias e pelo valor do terreno.

O artigo 231 da Constituição Federal, em seu parágrafo 6º, torna “nulos e extintos” os “atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse” das terras tradicionais indígenas. Ou seja: qualquer título de propriedade que esteja sobre esses territórios não tem validade. E não há nada previsto em termos de direito a indenizações, diante da extinção destes atos. A constituição permite apenas a compensação pelas “benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé”. Além disso, não está clara qual será a forma de garantir a posse integral do território aos Povos Indígenas, uma vez demarcado o território e paga a indenização aos fazendeiros invasores. A proposta deixa lacunas para o alargamento de conflitos que oneram o Estado e ceifam vidas indígenas.

Já Cristiano Zanin, afastou a tese do Marco Temporal durante seu voto no dia 31 de agosto, no entanto propôs a indenização com base em danos causados a terceiros pelo Estado, prevista no artigo 37 da Constituição. O que significa responsabilizar o poder público por equívocos na gestão das terras, visto que foi o próprio Estado que permitiu titular propriedades privadas sobre territórios tradicionais indígenas. Zanin atribui as sobreposições de TIs ao fato dos fazendeiros terem acreditado na idoneidade dos títulos concedidos pelas instituições estatais.
Para ele, a indenização deve ocorrer por via judicial ou administrativa. Um processo que correria fora dos trâmites para a demarcação de terras indígenas, sendo analisado caso a caso. As verbas para o pagamento das indenizações seriam encaminhadas do governo federal e dos estados e municípios que tenham incentivado a titulação privada de terras indígenas.

A proposta de Moraes é mais aprazível aos olhos do agronegócio. Gustavo Passarelli, advogado da Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), afirmou que “se [a indenização] pudesse fazer parte do processo administrativo [de demarcação de terras indígenas], acho que ajudaria a todos. Se for necessário esperar que o produtor ajuíze a demanda para depois receber a indenização, isso certamente atrasa o procedimento administrativo”, pontua Passareli. “Se no próprio procedimento administrativo já tiver uma previsão nesse sentido, fica mais rápido. O procedimento judicial é moroso.”

O Ministério dos Povos Indígenas apontou o voto de Zanin como uma saída mais plausível. “Mesmo com a questão das indenizações à terra nua, a proposta do ministro Zanin não impede a continuidade e abertura de novos processos demarcatórios, já que cada caso poderá ser analisado com suas particularidades”, afirmou Sonia Guajajara em nota divulgada no dia 31 de agosto.

A Apib se opõe a qualquer tipo de indenização, partindo do entendimento de que a própria constituição aponta o direito originário à terra e prevê no processo demarcatório as devidas garantias de direitos aos pequenos agricultores e aos investidores, que possam ter manejado benfeitorias dentro dos territórios, não demarcados pela morosidade do próprio Estado. Já os grandes proprietários do agronegócio têm atuado sistematicamente com suas frentes, confederações e articulações, para manipular leis, a economia e a política, além do uso da violência e do extermínio, para impedir as demarcações e se locupletar com as invasões. De maneira nenhuma se poderia considerar ações de “boa fé” destes sujeitos.

Um exemplo disso, é a Proposta de Emenda à Constituição número 48/2023, protocolada na última quinta-feira, 21/09, mesmo dia em que o Supremo apontou a inconstitucionalidade do marco temporal. A PEC feita pelo senador Hiran Gonçalves (PP-RR) ressuscita a tese e quer alterar a constituição para beneficiar os invasores.

Mesmo com a decisão do STF, apontando para a tese do indigenato, o Congresso Nacional continua discutindo o PL 2903/23, que também busca instituir o Marco Temporal e apresenta outras inúmeras ameaças aos direitos indígenas. O PL está nas mãos do senador Marcos Rogério (PL-RO), relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e deve voltar à pauta nesta semana.

Territórios em disputa

A Terra Indígena onde o cacique Raoni Metuktire passou sua juventude, chamada de Kapôt Nhinore, de ocupação tradicional dos povos Yudja (Juruna) e Mebengokrê (conhecidos como Kayapó), possui a maior área reivindicada por fazendeiros. Os estudos de identificação e delimitação foram aprovados pela Funai em julho deste ano. O território possui 362 mil hectares e está localizado na bacia do rio Xingu, entre os municípios de Santa Cruz do Xingu (MT), São Félix do Xingu (PA) e Vila Rica (MT).

Destes, mais de 258 mil hectares são reivindicados por fazendeiros, 79% da terra indígena. Se todos eles fossem indenizados pelo valor da terra nua, o custo seria de R$477,5 milhões.

Entre as dez terras que fazem parte do levantamento da Agência Pública, três estão na mesma região do Maranhão, cerca de 580 km a sudoeste de São Luís. As Terras Indígenas Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, Bacurizinho e Kanela Memortumré têm juntas cerca de 374 mil hectares, sendo que ao menos 194 mil (52% do total) são disputados por fazendeiros. Se todos eles fossem indenizados pelo valor médio da terra nua aplicado hoje pelo Incra, seriam necessários R$108 milhões.

As Terras Indígenas Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, Bacurizinho, reivindicam ampliação de áreas demarcadas, e já estão declaradas. Enquanto Bacurizinho é habitada pelo povo Guajajara, a terra Porquinhos é do povo Canela Apanyekrá. Já o território Kanela Memortumré é ocupado pelo povo Kanela e aguarda portaria declaratória.

O estado do Mato Grosso do Sul é campeão em casos de invasão de terras indígenas e assassinatos, de acordo com dados dos relatórios Os Invasores I e II, da página De Olho nos Ruralistas e levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) com base em números do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Três tekoha (“lugar onde se é”, em Guarani) na região de Dourados, onde vivem os povos Guarani e Kaiowá, somam cerca de 118 mil hectares, sendo que metade é disputada por fazendeiros. Juntas, as indenizações nas TIs Dourados-Amambaipeguá I, Iguatemipegua I e Ypoi/Triunfo custam R$269,8 milhões.

Os conflitos na região envolvem os Guarani e Kaiowá expulsos de suas terras a partir do século 19, que desde o fim da década de 1970 buscam retomar os territórios transformados em fazendas.

Estes territórios são apenas alguns exemplos das disputas envolvendo os abusos do agronegócio e os povos indígenas. O recente levantamento do De olho nos ruralistas apontou que existem 1.692 invasões de fazendas sobre terras indígenas, resultando em 1,18 milhão de hectares, envolvendo empresas transnacionais, políticos, donos de veículos de comunicação e personalidades da elite brasileira.

Casal de rezadores Kaiowá e Guarani morrem carbonizados em incêndio criminoso

Casal de rezadores Kaiowá e Guarani morrem carbonizados em incêndio criminoso

Sebastiana e Rufino, casal de rezadores do povo Guarani e Kaiowá, foram encontrados mortos, em meio às cinzas da casa onde moravam, nesta segunda-feira (18/09), na aldeia Guassuty, em Aral Moreira, cidade que fica na linha de fronteira entre Brasil e Paraguai, a 359 km de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.

Ambos eram considerados líderes religiosos pelo povo, que denuncia o atentado como crime de racismo religioso e resultado do conflito pelo território.

Já a Polícia Civil está investigando o caso como “crime passional”. Um suspeito, que seria familiar das vítimas, foi identificado e preso na tarde de ontem. Forças da Polícia Militar e da Polícia Civil cercaram a região com as buscas.

A comunidade discorda da linha policial. Sebastiana era chamada de Ñande Sy pelos Guarani e Kaiowá, termo que significa “nossa mãe” em guarani. As imagens da casa mostram o local completamente destruído e os restos mortais carbonizados.

Lideranças locais contam que o casal já havia sofrido ameaças, que se não parassem com as práticas da religiosidade indígena seriam “queimados vivos”. A casa era utilizada como um lugar de rituais e alguns fanáticos religiosos nutriam preconceitos, chamando as práticas de “macumba”. O que demonstra uma dupla discriminação, contra as religiões afro-brasileiras e contra a cultura indígena.

O delegado que investiga o caso, Maurício Vargas, afirmou que “a competência da PF é só na questão de disputa de terra ou em coisas relacionadas à xenofobia”, por isso a Polícia Federal não foi acionada.

Violência no MS

O estado do Mato Grosso do Sul é um dos líderes em violência contra os povos indígenas. Em fevereiro de 2022, o relatório “Intolerância religiosa, racismo religioso e casas de rezas Kaiowá e Guarani queimadas”, publicado pelo Observatório Kunangue Aty Guasu, mostrou outros casos de incêndios com indícios de crime provocados contra as casas de rezas (oga pysy), assim como agressões, ameaças, torturas e tentativas de homicídio contra nhanderu (rezadores) e feminicídio contra as nhandesy (rezadoras), apontando uma forma de ataque sistemático e reincidente no MS, contra a cultura e as vidas indígenas.

A continuidade das violações de direitos dos povos originários materializada na queima dos símbolos sagrados remonta às práticas missionárias no interior das aldeias trazidas por países europeus através da colonização. A Companhia de Jesus e o avanço dos jesuítas sobre o território atualmente ocupado pelo Estado brasileiro, por exemplo, teve forte caráter bélico. 

Destruir a fé e a cultura indígena significa minar a capacidade de resistência dos povos sobre suas terras. Como afirmou uma nhandesy que testemunhou a queima da casa de reza na tekoha Rancho Jacaré, “na luta pelo território, a reza nos fortalece, pois a igreja não nos salva durante a retomada”.

Os departamentos jurídicos da Apib e da Aty Guasu estão acompanhando o caso. Exigimos a investigação minuciosa do crime e justiça aos responsáveis. BASTA DE VIOLÊNCIA!

Apib e Apoinme realizam audiência pública sobre a violação dos direitos indígenas na Bahia

Apib e Apoinme realizam audiência pública sobre a violação dos direitos indígenas na Bahia

A Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública em parceria com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) realizam uma audiência pública à Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA) para tratar do tema “Violações de Direitos dos Povos Indígenas no Estado da Bahia”, no dia 26 de setembro de 2023, às 9 horas.

A Bahia é o segundo estado com maior população indígena do país. Com 229,1 mil pessoas de etnias indígenas, atrás apenas do estado do Amazonas. No entanto, o último período registrou um aumento no número de casos de violência, perseguições e assassinatos que, mesmo com a intervenção realizada pelo governo do Estado, ainda não foi contida.

A criação da Frente Parlamentar tem como objetivo “aprimorar a atuação conjunta com movimentos ambientalistas, povos e comunidades tradicionais do estado para fortalecer a agenda de proteção ambiental e da promoção do bem viver de povos e comunidades tradicionais”, como explica o documento que justifica a solicitação.

Desta forma, uma das primeiras atividades da Frente será a apuração em audiência dos casos e denúncias que levaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a conceder o pedido de Medidas Cautelares em favor do povo Pataxó, solicitadas pela Apib e Apoinme, em janeiro de 2023. A medida é referente aos casos ocorridos nas Terras Indígenas (TIs) Comexatibá e Barra Velha do Monte Pascoal. A CIDH indicou que os indígenas destas áreas estão em “grave e urgente risco de dano irreparável aos seus direitos”.

Causas da violência

O povo Pataxó do extremo sul baiano aguarda há anos a conclusão da demarcação de suas terras. A falta de eficiência na atuação do Estado brasileiro abre brechas para a promoção de invasões por parte do agronegócio, do setor hoteleiro e da especulação imobiliária na região.

Por esse motivo, a TI Comexatibá se tornou um local de mais disputas de terra do que qualquer outro território indígena no Brasil, refletido na alta quantidade de contestações administrativas no seu processo de demarcação.

O povo originário destes territórios tem sofrido com violência intensa, contínua e desproporcional, por meio de ameaças, cercos armados, tiroteios, difamações e campanhas de desinformação.

Frustrados por ver o agronegócio destruir seu território, membros de várias comunidades indígenas Pataxó, no sul da Bahia, realizaram uma ação de retomada em 22 de junho de 2022, quando 180 indígenas assumiram a Fazenda Santa Bárbara, área utilizada para a criação de gado e cultivo de eucaliptos pela Suzano, empresa transnacional de produção de celulose.

A fazenda, que se encontra no interior dos limites do Território Indígena Pataxó Comexatibá, foi incendiada e, numa tentativa de deter a pressão externa sobre suas terras, os indígenas exigiram que as empresas multinacionais as deixassem para sempre.

A Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat) afirmou em nota que, “atualmente, fazendeiros na forma de fomento, fazem a exploração da área com plantações de eucaliptos, trazendo sérios problemas ambientais para toda a região, inclusive, desmatamentos e uso excessivo de agrotóxicos”.

Tais práticas vêm afetando os recursos hídricos, ecossistemas, fauna e flora, causando destruição de fragmentos de Mata Atlântica, espécies de plantas, animais e pássaros ameaçados de extinção ainda existentes na região. Para além das empresas de produção de celulose, os Pataxó também enfrentam a expansão dos setores de turismo e outros setores do agronegócio.

Grande parte do eucalipto cultivado no Brasil está na região que compreende o extremo sul da Bahia e o estado vizinho, Espírito Santo, região que tem uma longa história de conflitos envolvendo as plantações para produção de celulose, cujo resultado tem sido o assassinato de ativistas em contextos de grilagem de terra associados à expansão desse cultivo.

Após a retomada, foram assassinados três jovens indígenas. Casos que ainda não foram totalmente elucidados. O povo Pataxó exige justiça aos responsáveis, mandantes e executores dos crimes, e imediata demarcação de seus territórios. Assinam o pedido de audiência o deputado estadual, Hilton Coelho (PSOL), e os representantes jurídicos da Apib, Maurício Terena e Andressa Pataxó.

Coordenadora nacional do Conaq, Bernadete Pacífica, é assassinada na Bahia

Coordenadora nacional do Conaq, Bernadete Pacífica, é assassinada na Bahia

A líder quilombola, Bernadete Pacífico, foi executada a tiros na Bahia, nesta quinta-feira, 17/08. Seu neto encontrou o corpo alvejado no sofá de casa, no Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, região metropolitana de Salvador. Bernadete era Yalorixá da comunidade e já havia perdido o filho, Binho do Quilombo, também assassinado por conflito fundiário, em 2017.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil manifesta sua solidariedade à família, à Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos e a todo movimento negro do Brasil. Reforçamos as denúncias de violência e repudiamos o crime, em coro com a organização.

À dor da perda desta grande liderança, ecoamos os maracás gritando por justiça. Seguiremos em luta pela democratização da terra no Brasil, até que todos, todas e todes lutadoras do povo possam viver em segurança e se respeite os direitos, a dignidade, a sabedoria e a vida dos povos originários deste país.

Confira a nota da Coordenação Nacional de Articulação dos Quilombos.

A Conaq repudia o assassinato da Coordenadora Nacional Bernadete Pacífico
É com profundo pesar que lamentamos o falecimento de Maria Bernadete Pacífico, a popular Mãe Bernadete, como era carinhosamente conhecida por todas as pessoas. Mãe Bernadete era Coordenadora Nacional da CONAQ e liderança quilombola do Quilombo Pitanga dos Palmares, localizada no município de Simões Filho, estado da Bahia. Sua dedicação incansável à preservação da cultura, da espiritualidade e da história de seu povo será sempre lembrada por nós. Nos apoiaremos no seu exemplo e no seu legado na luta por justiça. Nossos sentimentos estão com o Quilombo Pitanga dos Palmares, com suas amigas e amigos, e com sua família, da qual fazemos parte enquanto quilombolas. Sua ausência será profundamente sentida. Seu espírito inspirador, sua história de vida, suas palavras de guia continuarão a orientar-nos e às gerações futuras.

A família Conaq sente profundamente a perda de uma mulher tão sábia e de uma verdadeira liderança. Sua partida prematura é uma perda irreparável não apenas para a comunidade quilombola, mas para todo o movimento de defesa dos direitos humanos.

Mãe Bernadete foi insidiosamente executada na noite desta quinta-feira (17/08). Era mãe de Flávio Gabriel Pacífico dos Santos (Binho do Quilombo), liderança quilombola da comunidade Pitanga dos Palmares, também assassinado há 6 anos. O assassinato de Binho, como o de tantas outras lideranças quilombolas, continua sem resposta e sem justiça. Junta-se à injustiça mais uma vítima da violência enfrentada por aqueles que ousam levantar suas vozes na defesa dos nossos direitos ancestrais. Mãe Bernadete, agora silenciada, era uma luz brilhante na luta contra a discriminação, o racismo e a marginalização. Atuava na linha de frente para solucionar o caso do assassinato do seu filho Binho e bravamente enfrentou todas adversidades que uma mãe preta pode enfrentar na busca por justiça e na defesa da memória e da dignidade de seu filho. Nessa luta, com coragem, desafiou o sistema e, como tantas mulheres, colocou seu corpo e sua voz na defesa de uma causa com a qual tinha um compromisso inabalável. Sua voz ressoava não apenas nas reuniões e eventos, mas também nos corações daqueles que acreditavam na mudança.

Este acontecimento trágico evidencia a crueldade das barreiras que se colocam no caminho de quem luta. Enquanto lamentamos a perda dessa corajosa liderança, também devemos nos unir em solidariedade e determinação para continuar o legado que ela deixou. Que sua memória inspire novas gerações a continuar a luta por um mundo onde todas as vozes sejam ouvidas, todas as culturas e religiões sejam respeitadas e todos os direitos sejam protegidos.

A Conaq exige que o Estado brasileiro tome medidas imediatas para a proteção das lideranças do Quilombo de Pitanga de Palmares. É dever do Estado garantir que haja uma investigação célere e eficaz e que os responsáveis pelos crimes que têm vitimado as lideranças desse Quilombo sejam devidamente responsabilizados. É crucial que a justiça seja feita, que a verdade seja conhecida e que os autores sejam punidos. Queremos justiça para honrar a memória de nossa liderança perdida, mas também para que possamos afirmar que, no Brasil, atos de violência contra quilombolas não serão tolerados.

Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado vota relatório do PL 2903 nesta quarta

Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado vota relatório do PL 2903 nesta quarta

A Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado vai apreciar o relatório sobre o Projeto de Lei 2903 (antigo PL490, de 2007, na Câmara dos Deputados), ou PL do Marco Temporal, nesta quarta-feira, 16/08, a partir das 14h. Se for aprovado, ele segue para a avaliação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

A relatora da matéria, senadora Soraya Thronicke, ignorou os alertas feitos pela coordenação executiva da Apib e por nossas parlamentares da Bancada do Cocar, dando um parecer favorável para aprovação. A posição da senadora não é novidade, ela faz coro com a bancada ruralista da Câmara dos Deputados.

Eleita pelo partido Podemos, do Mato Grosso do Sul, ela é representante do agronegócio pelo estado que é um dos maiores centros de conflito por invasão de terra indígena no Brasil. O Mato Grosso do Sul abrange grande parte do território Guarani Kaiowá, onde aconteceram, recentemente, o Massacre de Guapoy e outros ataques da Polícia Militar ao povo, que luta pela retomada de sua terra sagrada.

A Senadora foi base do governo fascista de Bolsonaro, quando era filiada ao PSL, e discursou pedindo apoio ao governo, no lançamento do Movimento Brasil Verde Amarelo, em 2019, que reuniu 76 associações de fazendeiros de direita para apoiar os desmandos da bancada ruralista no congresso.

O marco temporal tramita como um projeto de lei, que tem por objetivo datar a demarcação de terras indígenas, limitando as demarcações apenas àquelas terras em posse das comunidades na data da promulgação da constituição. A sua possível aprovação fere o direito originário, previsto nas leis brasileiras pelo menos desde 1834, excluirá a demarcação de áreas de retomadas realizadas a partir de 1988, legalizando áreas invadidas e griladas pelo agrobanditismo.

Os ruralistas justificam o PL 2903, como uma “segurança jurídica para produtores”. O agrobanditismo precisa se garantir juridicamente, alterando as leis constitucionais, visto que estes se apossaram ilegalmente de terras indígenas, passíveis de serem devolvidas para as comunidades originárias.

No relatório, a senadora afirma que “não se mostra razoável, proporcional e legítimo adotar para o conceito “tradicionalmente” uma ocupação que regresse a um marco temporal imemorial, ou seja, ocupação a tempo atávico, a períodos remotos, que, no limite, poderia gerar disputa sobre todo o território nacional”.

Essa disputa sobre o território nacional está nos marcos da colonização brasileira. A retórica dos defensores do PL 2903, esconde os efeitos da lei. Caso o Marco Temporal seja aprovado, todas as TIs, independente da situação e da região em que se encontram, serão avaliadas de acordo com a tese, colocando 1393 terras indígenas sob ameaça direta.

Nota do departamento jurídico da Apib sobre as violências contra o povo Tembé

Nota do departamento jurídico da Apib sobre as violências contra o povo Tembé

O departamento jurídico da Apib publicou uma nota sobre o ataque às lideranças indígenas do povo Tembé. Na sexta-feira, 04/08, dia em que iniciaram as atividades dos Diálogos Amazônicos, em Belém, o jovem indígena Kauã, foi baleado.

Na manhã do dia 07/08, durante preparativos para recebimento da visita do Conselho Nacional de Direitos Humanos, em Tomé-Açu (PA) e véspera das atividades da Cúpula da Amazônia, quando o Pará recebeu Chefes de Estado e o movimento indígena enfatizou a necessidade de pôr fim à violência contra os povos, três lideranças foram baleadas por seguranças privados da empresa Brasil Bio Fulls (BBF). Uma das vítimas afirma em áudio que pegou dois tiros, sendo um no ombro e outro na coxa.

O crime ocorreu dentro da aldeia Bananal do povo Tembé, a 200 km de Belém. O povo Tembé, que denuncia a violação de direitos humanos e a falta de consulta previa, livre e informada no empreendimento de plantação de dendê da BBF.

A nota ressalta que os ataques “não se tratam de episódios isolados”, mas fazem parte de “inúmeros casos de violações de direitos humanos e ambientais ocorridos na região”. Ali encontram-se duas terras indígenas e seis comunidades quilombolas, cercadas por milhares de pés de dendê. São conflitos ligados a décadas de invasões e grilagens dos territórios, cuja ocupação ancestral data de pelo menos 200 anos.

Confira a nota completa:

NOTA PÚBLICA SOBRE OS ATAQUES AO POVO TEMBÉ

Brasília, 08 de agosto de 2023.

Entre a última sexta-feira (04/08) e esta segunda (07/04), quatro indígenas da etnia Tembé foram atingidos por disparos de armas de fogo em Tomé-Açu, no Pará. O primeiro ataque ocorreu na sexta, quando Kauã, indígena do povo Tembé de 19 anos, foi baleado. Na mesma data foi dado início às atividades que antecedem a Cúpula da Amazônia, sediada em Belém, a 200km da região dos ataques, em ocasião na qual o Pará recebe Chefes de Estado e o movimento indígena enfatiza a necessidade de pôr fim à violência contra os povos. O crime ocorreu dentro da aldeia Bananal do povo Tembé. O momento em que a vítima foi socorrida, após ser atingida entre as pernas, foi registrado em um vídeo que circula pelas redes sociais.

A Associação Indígena Tembé Vale do Acará enviou comunicado ao Ministério Público Federal (MPF), relatando que a comunidade verificou que, no dia 03/08, chegou forte e ostensivo grupamento de Polícia Militar especializada no município de Tomé-Açú, e que, no dia seguinte, passaram a intervir de maneira truculenta no local ocupado pela comunidade indígena Tembé. Acompanhados de seguranças fortemente armados da empresa Brasil Bio Fuels – BBF, os policiais interditaram a ponte que dá acesso à área de ocupação. Segundo informações divulgadas pelo Ministério Público Federal (MPF), o disparo pode ter sido feito pelos policiais militares ou pelos seguranças privados.

Diante do episódio de 04/08, o MPF solicitou ao governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), que sejam tomadas medidas urgentes para pôr fim à violência policial. Ainda no dia 04/08, o órgão requisitou à Polícia Federal que fosse aberta investigação sobre o caso com urgência, bem como fosse deslocado efetivo para a área indígena. Além disso, a Justiça Estadual em Tomé-Açu foi oficiada pelo MPF, que solicitou informações sobre o caso.

Já nesta segunda, dia 07/08, outros três indígenas foram baleados por seguranças privados da BBF. Daiane Tembé, que filmava a ação, foi atingida por tiros no pescoço e no maxilar e transportada por UTI aérea a Belém/PA. Dois outros indígenas encontram-se desaparecidos.

O novo crime ocorreu momentos antes da chegada de uma missão especial coordenada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que se dirigia ao município de Tomé-Açú/PA para apurar as violações de direitos humanos denunciadas pelos indígenas durante uma mesa paralela dos “Diálogos Amazônicos”, ocorrida dias antes em Belém. A conselheira do CNDH Virgínia Berriel, presente na missão, afirmou que trata-se de “mais um ataque covarde aos direitos humanos, porque isso só aconteceu devido a nossa vinda ao local”.

Tais ataques não se tratam de episódios isolados. Os episódios aqui narrados somam-se aos inúmeros casos de violações de direitos humanos e ambientais ocorridos na região. Cercadas por milhares de pés de dendê, encontram-se: i) a Terra Indígena Turé Mariquita (a menor em território do Brasil), do povo Tembé, com  13 aldeias; ii) a TI Turyuara, que aguarda homologação e possui três aldeias; e iii) seis comunidades quilombolas, reunidas em torno de uma associação, a Amarqualta, com cerca de 350 famílias. Não se tratam se conflitos novos, mas que estão ligados a décadas de invasões e grilagens dos territórios, cuja ocupação ancestral data de pelo menos 200 anos.

É a partir deste contexto que os indígenas do povo Tembé vêm reivindicando o direito coletivo sobre as terras em que é produzido o óleo de palma e questionando o impacto ambiental dos agrotóxicos e do descarte de rejeitos da produção. Devido a isso, vêm sofrendo diversos ataques.

Em maio deste ano, o Cacique Lúcio Gusmão, do povo Tembé, foi alvejado com tiros na cabeça em emboscada em razão de sua atuação na defesa dos territórios tradicionais de 16 (dezesseis) aldeias indígenas, 6 (seis) quilombos da Associação Amarqualta e comunidades ribeirinhas constantemente ameaçadas pela maior produtora de óleo de palma da América Latina, a empresa Brasil Biofuels (BBF).

Logo após o episódio com o Cacique Lúcio, o povo Tembé passou a denunciar campanha criminalizadora da Brasil BioFuels, que vem chamando os indígenas de “invasores”, acusando-os de se beneficiarem do “status de indígenas” para invadir áreas da companhia, “colher e comercializar o dendê plantado pela empresa”, e “utilizar veículos de imprensa, ONGs e redes sociais para se colocarem como vítimas”. Trata-se de uma tentativa de deslegitimação dos indígenas em luta pela demarcação de suas terras, cujo resultado é um aumento da revolta das populações locais contra os indígenas.

O próprio Ministério Público Federal do Pará reconheceu que há um nível intenso nível de conflituosidade na região que traz riscos concretos à vida e à integridade física dos indígenas, havendo ligação direta entre tais episódios de violência e os conflitos com empresas produtoras de dendê na região, o que inclusive impõe a atuação dos órgãos federais, tendo em vista que a disputa envolve direitos coletivos dos povos indígenas. Ainda de acordo com o MPF-PA, tais ataques vêm ocorrendo desde a instalação da empresa Biopalma, empresa adquirida pelo Grupo BBF em 2020,  ao redor da Terra Indígena Turé Mariquita, em Tomé-Açu.

Em abril, o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) chegou a pedir a prisão do dono da BBF, Eduardo Schimmelpfeng da Costa Coelho, e do chefe de segurança da empresa, Walter Ferrari, acusados de tortura de 11 ribeirinhos da região. Apesar de um suspeito de ser o mandante do crime ter sido preso dois dias após o ataque, lideranças da comunidade alegam não estar satisfeitas e tampouco entendem que o caso foi elucidado.

A denúncia do MPPA aponta que um “grupo com características paramilitares” atua reprimindo comunitários que vivem em terras reivindicadas pela BBF. Tal milícia armada seria comandada pelo dono e pelo chefe de segurança da BBF, que recrutaram e treinaram funcionários que trabalham na colheita do dendê para que atuassem em situações de conflito, fato esse que também é investigado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Além disso, tanto o MPPA quanto o MPF alegam que: i) a empresa também comete crimes ambientais; ii) há indícios de fraudes em seus licenciamentos junto à Secretaria de Meio Ambiente do Pará (Semas); iii) a consulta prévia, livre e informada, segundo prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não foi cumprida.

Não há dúvida, portanto, que estamos diante de graves violações a preceitos fundamentais protegidos pela Carta Magna. Existem claras violações ao direito à vida e à integridade física (art. 5º), ao direito à terra tradicionalmente ocupada (art. 231) e ao direito à segurança pública (art. 144º).

Diante disso, no dia 07 de agosto, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), organização que articula e representa os povos indígenas a nível nacional, formada pelas organizações indígenas de base das distintas regiões do país, enviou comunicação à Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (SEGUP/PA), solicitando informações e providências urgentes com vistas a garantir os direitos e a segurança do povo Tembé em Tomé-Açú-PA.

Mauricio Serpa França

Coordenador Jurídico da APIB – OAB/MS 24.060

Victor Hugo Streit Vieira

Assessor Jurídico da APIB – OAB/PR 115.553

Ingrid Gomes Martins

Assessora Jurídica da APIB – OAB/DF 63.140

Carta dos Povos Indígenas da Bacia da Amazônia aos presidentes

Carta dos Povos Indígenas da Bacia da Amazônia aos presidentes

A melhor forma de frear e solucionar a crise climática global é dar ouvidos aos povos indígenas. Sabemos o que dizemos e não somente nós: segundo a ONU, mesmo representando apenas 5% da população mundial, preservamos cerca de 80% da biodiversidade do mundo. Isso decorre de nossa cosmovisão; não nos limitamos a enxergar somente o que está ao alcance de nossas vistas, mas além.
As florestas tropicais são as barreiras terrestres mais eficientes contra o avanço das mudanças climáticas. Sem nós, não haverá Amazônia; e, sem ela, o mundo que conhecemos não existirá mais. Porque nós somos a Amazônia: sua terra e biodiversidade são o nosso corpo; seus rios correm em nossas veias. Nossos ancestrais não só a preservaram por milênios, como ajudaram a cultivá-la. Vivemos nela e por ela. E, ao longo dos séculos, temos dado nossas próprias vidas para protegê-la.

Dito isso, nos dirigimos aos representantes e Chefes de Estado presentes à Cúpula da Amazônia e aos que vão participar da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2023 (COP-23), no fim deste ano, em Dubai:

CONSIDERANDO:
A discussão coletiva e os acordos firmados pelos povos indígenas de seis países amazônicos, representados pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Organização Indígena de Suriname (OIS), Associação dos Povos Ameríndios (APA) da Guiana Inglesa, Confederação das Nacionalidades Indígenas da Amazônia Equatoriana (CONFENIAE), Federação dos Povos Indígenas da Guyana Francesa (FOAG), Confederação dos Povos Indígenas da Bolívia (CIDOB) e Organização Nacional dos Povos Indígenas da Amazônia Colombiana (OPIAC) presentes em Belém para os “Diálogos Amazônicos”, realizado nos dias 4, 5 e 6 de agosto de 2023, e na Cúpula da Amazônia, dias 8 e 9 deste mês;
A importância dos povos indígenas representados aqui em Belém, reconhecendo nossas proteções históricas à Amazônia, e nossa visão de seguir protegendo-a no presente e no futuro;
Que os tratados, convenções e declarações firmados e ratificados pelos Estados membros da Amazônia, que garantem os direitos humanos e coletivos dos povos indígenas da Amazônia, a exemplo da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007, precisam ser adotados, implementados e respeitados;
Que entre esses Direitos Humanos e Coletivos estão o direito à autodeterminação, ao desenvolvimento, à segurança e à vida;
Que o direito à autodeterminação abrange os princípios e valores dos povos indígenas, levando-se em conta nossas diferentes visões de mundo, e a diversidade cultural e linguística que nos caracteriza;
Que nossas visões de mundo se expressam em nossos territórios desde tempos imemoriais, muito antes da formação dos Estados da Amazônia, e possuímos sistemas próprios de governança e justiça comunitária, de acordo com os usos e costumes de nossos povos, e independentes do reconhecimento por parte destes Estados;
Que as políticas e práticas desenfreadas e irresponsáveis de desenvolvimento estão levando nossa Amazônia a um ponto crítico de não retorno e ao extermínio dos nossos povos, causados principalmente pelo desmatamento, a mineração, a exploração e extração de petróleo e gás, a poluição e contaminação dos rios e a exploração de recursos naturais para abastecer as cadeias produtivas globais;
Que, para os povos indígenas, a conservação da biodiversidade tem estreita relação com o respeito e a convivência harmônica com a Mãe Terra, a prosperidade e fortalecimento das culturas indígenas e nossos modos de vida;
Que a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas que temos protegido desde tempos ancestrais, que incluem as matas, as águas e todos os biomas amazônicos, é resultado direto de nossos conhecimentos e sistemas tradicionais, praticados coletivamente e transmitidos por gerações;
Que, apesar de os povos indígenas representarem apenas 5% da população mundial, conservamos cerca de 80% da biodiversidade existente, que é essencial para que a natureza faça sua parte em conter as mudanças climáticas;
Que os povos indígenas são os mais afetados pelo aquecimento global e seus impactos, tais como as enchentes, secas e deslizamentos de terra, entre outros, e que, apesar disso, encontramos tempo e disposição para liderar a luta contra as mudanças climáticas;
Que os povos indígenas criaram, desenvolveram e estabeleceram práticas agrícolas tradicionais alinhadas com os processos naturais e, portanto, com segurança e soberania alimentar sustentável;
Que os povos indígenas são atores-chave para a promoção de uma economia indígena que proteja a Amazônia e garanta o seu desenvolvimento sustentável;
Que, na COP-26, realizada em Glasgow, na Escócia, e, 2021, foi acertado que os povos originários teriam direito a um financiamento direto, por parte dos países mais ricos e desenvolvidos, para realizarem seu trabalho, fundamental para o mundo inteiro, e que essa promessa ainda não foi cumprida;

Os povos indígenas da Bacia Amazônica vêm, por meio desta carta, exigir dos Chefes de Estado desses países e demais líderes dos países mais desenvolvidos:

1. A garantia do direito originário aos territórios indígenas e aos recursos naturais e seu reconhecimento, demarcação e titulação, até no máximo 2025, como forma de nos assegurar a segurança jurídica necessária para que possamos nos concentrar em nossas práticas de conservação da floresta, usando nossos conhecimentos ancestrais.
2. Garantir que as legislações nacionais estejam em conformidade com a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, e às normas e marcos legais internacionais de direitos humanos.
3. A garantia do cumprimento imediato das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como de sentenças judiciais no âmbito nacional, que afetam diretamente a vida dos povos indígenas, a fim de que seus direitos sejam garantidos.
4. A garantia da segurança e proteção da vida, usos e costumes de todos os povos indígenas da Amazônia, com especial atenção à proteção e à segurança das mulheres, jovens, anciãos e anciãs, pois são eles os principais pilares de sustentação da família, da comunidade e da coesão social.
5. A implementação urgente das ações necessárias para evitar o ponto de não retorno e garantir a conservação efetiva de, pelo menos, 80% da Amazônia até 2025, com o objetivo de atingir o desmatamento zero até 2030.
6. A desintrusão de todos os territórios indígenas ilegalmente ocupados por não-indígenas e por empresas.
7. A implementação urgente das ações necessárias para a restauração das terras indígenas degradadas pelos impactos ambientais gerados pelo extrativismo, indústria e atividades agropecuárias intensivas, bem como outras práticas não-sustentáveis.
8. O cumprimento integral da Carta Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas; da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, sobre povos indígenas e tribais; do Acordo de Paris e da Declaração de Glasgow, do novo Marco Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal, e outros tratados internacionais e regionais. Especialmente, no que se refere ao respeito aos direitos humanos, à autodeterminação, à consulta prévia, livre e informada, e ao reconhecimento e apoio ao papel desempenhado pelos povos indígenas na proteção, conservação e uso sustentável da biodiversidade e dos recursos naturais, e sua relação com os objetivos de ação climática e objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030.
9. O reconhecimento, por parte dos governos nacionais e subnacionais da Amazônia, da importância dos territórios indígenas para combater as mudanças climáticas e para a conservação da biodiversidade; a garantia do cumprimento das salvaguardas de Cancun e do Novo Acordo Global de Biodiversidade Kunming-Montreal em qualquer política, programa ou projeto que venha ser implementado, assegurando, assim, o direito dos povos indígenas à justa repartição dos benefícios e aos financiamentos públicos e privados que estão sendo implantados no âmbito das convenções internacionais, especialmente a Convenção de Mudanças Climáticas e a Convenção de Biodiversidade.
10. A implementação efetiva de mecanismos transparentes e inclusivos para a participação dos Povos Indígenas que optarem por acessar novos processos, como os mercados de carbono, respeitando seu consentimento prévio, livre e informado.
11. A implementação efetiva de políticas para a participação dos produtos da economia indígena nos mercados nacional, regional e internacional.
12. A implementação efetiva da consulta transparente e inclusiva para garantir o consentimento prévio, livre e informado dos Povos Indígenas para qualquer projeto relacionado à prospecção e/ou exploração de recursos naturais, incluindo recursos minerais, hidrocarbonetos, água, recursos florestais e recursos genéticos, entre outros, em territórios indígenas, terras públicas ou territórios em disputa.
13. A participação efetiva dos Povos Indígenas nos projetos de produção agroecológica a serem realizados em seus territórios, sempre obtendo seu consentimento prévio, livre e informado.
14. A criação de zonas de exclusão da exploração de petróleo, incluindo Yasuni, no Equador, e a foz do Rio Amazonas, no Amapá.
15. Acesso direto ao financiamento de todas as fontes, incluindo bancos multilaterais de desenvolvimento, e reconhecendo os mecanismos financeiros próprios dos povos indígenas.
16. A formação de redes de educação e comunicação ambiental na Bacia Amazônica.
17. A garantia de que os princípios aqui estabelecidos serão respeitados e valorizados por todos os Estados da Amazônia para garantir o respeito a todos os Povos Indígenas da Bacia Amazônica.
18. Reivindicamos que os Países da Bacia Amazônica reconheçam efetivamente a existência dos PIACI e implementem programas e políticas públicas baseadas nos princípios de respeito ao isolamento, a demarcação e proteção de seus territórios. Esta demanda, até agora relegada a um segundo plano nos espaços de decisão para mitigar os efeitos das mudanças climáticas, precisa considerar os que vivem e fazem a floresta. A Amazônia para todo Planeta, que sustenta nossas emergências, que reúne povos de tantas origens de todos os continentes, nunca seria tão diversa sem nós.
Para discutir mudanças climáticas, será necessário discutir, primeiro, o modelo de economia que queremos; desenhar as políticas públicas a partir das iniciativas indígenas, e não o contrário. Em se tratando de governança, é preciso criar cargos no governo baseados em nossos conhecimentos e habilidades.
Se uma economia se propõe transformadora, é fundamental mudar a lógica atual de mercado, que é voltada para as commodities e despreza a economia indígena; e aliar saberes tradicionais com conhecimentos científicos, para que o modelo de desenvolvimento adotado de agora em diante não continue sobrecarregando os mais vulneráveis.
É preciso rever conceitos; não falar de bioeconomia, mas de economia indígena. Uma economia genuinamente amazônica depende de mudanças nos conceitos de economia, tanto em se tratando do campo jurídico, como político. O projeto de lei que pretende estabelecer o “marco temporal”, sem que fôssemos consultados, não é só inconstitucional, desumano e injusto, mas um retrocesso que, em vez de trazer a tão falada segurança jurídica, fomenta a violência e agrava a crise climática.

O direito à vida e aos territórios indígenas devem ser definitivamente assegurados!

Subscrevem esta carta as organizações indígenas da Bacia Amazônica e as organizações indígenas da Amazônia brasileira.